A Melhor Transmissão do Mundo

A Melhor Transmissão do Mundo

(Uma homenagem mesmo sendo cabotina, não deixa de ser uma homenagem)

“Fernando, pessoa plural; segundo consta, sofria de transtorno de personalidade; eu achava que ele era bipolar, mas conhecendo-o melhor elevei de grau o meu conceito: tratava-se de figura tetrapolar; ora dizia ser Alberto, ora Álvaro, ora Ricardo e nas horas vagas ele mesmo. Uma coisa era certa: independentemente de que roupa sua identidade vestia, era um ser de conversa deveras aprazível.

Jorge, amado por todos, sem dúvida; compareceu com duas de suas filhas: Gabi, mais velha, faceira, costumava carregar consigo seu bicho de estimação; não sendo zootaxonomista, acreditava que era uma tartaruga ou mesmo um cágado. Depois, melhor informado, vi que o quelônio em questão era um Jabuti e que fora dado a Gabi, quando Jorge tinha lá seus 47 anos mais ou menos O fato é que ele jactava-se dizendo: “foi o primeiro da espécie”. A filha mais nova presente era proprietária de uma floricultura, cujo nome era o mais singelo que se podia conceber para tal ramo comercial: flor. Pelo fato, a proprietária ficou conhecida na cidade pelo nome fantasia do seu estabelecimento, precedido de respeitoso tratamento: “Dona Flor”. Ela era uma mulher voluptuosa e bígama assumida; seu lado deliciosamente transgressor, afirmava, compensava qualquer reprimenda social ou possível tipificação penal. Quanto a isto, só um dos cônjuges assumia caráter “oficial”, o outro era para exercitar sua “felicidade”, se é que vocês me entendem. Portanto, resumindo a conversa: Dona Flor tinha um marido de fato e um outro de fausto. Jorge ainda convidou uns militares que jogavam amiúde bola na praia. Tinha certa dificuldade em identificar as patentes, por isso a dúvida assaltava-lhe a mente sempre que era preciso da informação. Dizia que seus amigos da pelada praiana eram tenentes, coronéis, ou alguma outra patente da areia.

Graciliano chegou entre latidos e rosnadas. Estava em companhia de sua cachorrinha que conhecera famélica nas paisagens castigadas do semiárido. Compadecera-se de imediato; adotou-a. Em casa tratou de providenciar “dieta-de-estufa-bucho-de-bicho”. O resultado é que a cadelinha de tão gorda que ficou, parecia uma baleia.

Gonçalves, dias eu não o via. Soube por fonte fidedigna que encetara aulas de violão e que almejava tornar-se cantor e compositor. De concentração débil, precisava cercar-se de silêncio para a sua criação; por isso refugiava-se. “Um dia farei uma canção em algum lugar do meu recolhimento” , preconizava.

Muitos e muitos ilustres torcedores chegavam em excelsa profusão.

Era de se lamentar, no entanto, a ausência de Castro. Alves, seu amigo de remota data, confidenciou-me que ele tomou gosto pela política e viajava com frequência a Brasília para deitar conhecimento dos meandros da Câmara (dos deputados). Conhecera e encantara-se com uma jovem de rara inteligência, funcionária da casa parlamentar. Era só loas para a pretensa dona do seu coração. Suspirava dizendo: “eu amo a gênia da câmara! ” . De tanto amar, passou a cultivar cravos, “a flor dos deuses”, que no seu caso era a flor da deusa. Enquanto cultivava, recitava poesias. Mas não era muito disciplinado no ofício da “cuidança” das flores; os cravos morreram, todos eles. Só sobrou a poesia. Desta forma ficou conhecido como o “poeta dos ex-cravos”

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A essa altura, o locutor Anysio Aragão, valendo-me do seu humor prosaico chegou a pensar que já traçara o perfil psicológico e expusera idiossincrasias suficientes dos ilustres torcedores imaginários, que engenhosamente produzia para o deleite auditivo dos seus fiéis ouvintes da rádio. Por vezes, pensou em refrear sua verve cômica, pensando que tais bordões literários já estavam por demais surrados na grande estrada literária, conforme sentenciara seu irmão mais velho, escritor consolidado na cidade, identificado pelas iniciais AGLN. O irmão decano estava errado; E também se enganava quem assim pensava. Ávidos por mais descrições pitorescas, seus ouvintes ligavam para a rádio a todo o momento e suplicavam: ”conta mais coisas divertidas, Anysio! ”.

No fundo, o profissional da voz adorava as petições do seu público. Comediante frustrado, mesmo com o peso do nome e sobrenome, não logrou êxito, antanho, na arte da conquista da gargalhada alheia. Seu pai, fã declarado dos humoristas cearenses, resolveu homenageá-los na certidão de nascimento do filho. A infância e juventude de Anysio foi uma verdadeira doutrinação paterna para que seguisse a carreira dos seus ídolos. Incentivava-o a contar piadas no seu périplo pelas festinhas do bairro e cercanias. Os únicos sorrisos que o filho conseguia arrematar eram os amarelos, velados: por constrangimento ou comiseração. Nem a bela voz, encorpada, garantia-lhe algum sucesso na ingrata empresa: o cabotinismo falava mais alto. O pai, seu Gumercindo, resignara-se com a triste constatação. Pondero: constatação para essa geração; no íntimo, nutria inconfessável esperança de que seu futuro primeiro neto pudesse redimir o pai e o avô. Essa é outra estória. Vamos voltar para o Anysio. A voz privilegiada, não ficou sem a devida serventia. Dr. Celso, dono da “Rádio Ondas do Ar”, ao ouvi-lo certa feita, em uma das suas malogradas incursões pelo universo do humor, impressionado ficou com a potência vocal do então recém adulto. Aproximou-se dele e o abordou:

— Meu rapaz você tem talento. Não para o riso, mas para a locução. Já pensou em trabalhar em rádio?

Sacou da algibeira do paletó um cartão de apresentação e deu ao moço. Desnecessário dizer que Anysio ficara entusiasmado com a proposta, mas em respeito ao sonho do pai, teria ainda que aguardar algum tempo para concretizá-la.

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A paciência budista do empresário da comunicação radiofônica pela resposta ao convite formulado, somada à oportuna vaga aberta face ao afastamento do locutor titular por motivo de deterioração das cordas vocais (o dito, irresponsável, fumava feito uma chaminé) ensejou a oportunidade que, decerto, não desejava desperdiçar.

— Você não fuma, fuma? Perguntou-me apreensivo o empresário.

— Não senhor, asseverei.

(Após um breve e incontido suspiro de alívio)

— Então, quer trabalhar para mim?

Vamos congelar este momento narrativo e percorrer outras letras; mais à frente, asseguro-lhe, voltaremos a falar do Anysio.

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Rizzo, o patrão. Este era o seu patronímico; sujeito ameno nas feições, mas severo no trato, exigia de todos os funcionários denodo no cumprimento das tarefas profissionais. Arauto da aplicação de uma linha dura de trabalho, acreditava piamente na rígida disciplina espartana, afigurando-se, neste cenário, como o general Leônidas. A este respeito, nas esparsas conversas, regadas a tépidos cafezinhos em copinhos descartáveis, com os subordinados, costumava evocar tempos difíceis nos quais a “feroz concorrência” punha à mostra sua autodeclarada capacidade de resiliência (mais adiante, nesta narrativa, o leitor poderá constatar que era falácia essa estória de “ resiliência ”). Contava tudo com verve épica, arrematando sempre em tom judicioso:

— Eles [os concorrentes] ligavam para mim e diziam [na versão dele, é claro]: " Minhas flechas serão tão numerosas que obscurecerão a luz do sol ".

— Eu, sem deixar a peteca (digo, a flecha) cair redarguia: “ tanto melhor, combateremos à sombra ”.

Era uma alusão a uma passagem histórica, envolvendo o general grego Leônidas, na sangrenta batalha das termópilas, contra os persas, lá pelos idos de 480 a.C.

Os funcionários, por óbvio, se faziam acreditar em tudo; credulidade conveniente para manter sob controle o humor do chefe, afinal em tempos de mercado de trabalho retraído, quem em sã consciência iria admoestá-lo?

— Chega de arenga, repentinamente dizia; vamos trabalhar!

E assim foi a toada durante um bom período: regime espartano com pequenas pausas eventuais para a surrada conversa do “ chefe-combatente-destemido-que-nunca-entregava-os-pontos ”. Às vezes, dentro das poucas vezes, ilustrava seu “ discurso heroico ” com outra citação de apelo emocional. Entretanto, sempre que podia retornava com o “ pensamento clássico ”. O curioso nisso tudo, se é que ainda posso me alongar neste tema, é o cinismo disfarçado de dúvida no introito da sua narrativa.

— “ Eu já contei para vocês daquela vez que meus concorrentes ...? ”

Só mais tarde, fruto da inconfidência de um funcionário antigo, é que Anysio descobriu que seu patrão tinha grande admiração por história clássica, notadamente grega, e por determinados aspectos da história moderna

A situação da rádio inspirava cuidados; os anunciantes minguavam e com eles a receita; as despesas fixas aumentavam num ritmo tão veloz que até duvidava-se de sua classificação contábil (eram fixas mesmo?); as despesas variáveis, variavam: sempre para cima. A contabilidade, cada vez mais com requintes de crueldade, tingia de vermelho os números dos resultados operacionais. Isso já há alguns meses, diga-se de passagem. O Sr. Rizzo, otimista irremediável, mesmo vendo o iminente naufrágio da sua embarcação, mantinha-se firmemente na proa, cabeça erguida, espinha ereta, peito estufado (a barriga também, mas por outras razões). Sabia que a sua querida rádio, herança suada do pai e sonhada do avô, agonizava. Porém, não admitia para ninguém, nem sob tortura, que seu negócio estava na UTI. “No máximo, estava na antessala”, dizia ele, após pressão implacável dos curiosos da família e do círculo íntimo de amizade.

Antes de prosseguir, deixe-me primeiro produzir palavras sobre seus ancestrais. “Seu Edgar”, o pai, sempre gostara de radiofusão, o seu genitor, ainda mais.

A realidade da época do avô do Rizzo, não permitia acalentar sonhos que não fossem os forjados pela lâmina da enxada. A dura lavoura roubava-lhe muito tempo e “estragava a força” , como dizia Graciliano Ramos. Só restava transferir os anseios para as próximas gerações. Casado com Gertrudes, Lourival nunca despertou a simpatia sincera do sogro, fazendeiro modesto e viúvo; sua filha única, por seu turno, não compartilhava tal sentimento; ao contrário: apaixonara-se loucamente por Lourival, desde a primeira vez que nele pousou seus olhos, na lida da roça. Rememoremos as circunstâncias e os desdobramentos: estava Lori (assim ela o passaria a chamar) de torso nu, bem delineado, sob o sol inclemente da manhã, quando “do nada” surgiu Gegê (seu apelido de infância). Passado o frêmito inicial, ela se apresentou:

— Bom-dia moço, me chamo Gertrudes, pode me arrumar um copo d’agua, por favor?

Perguntou, sem antes verificar a existência de uma moringa ao pé da jaqueira (na verdade era uma estratégia ardilosa para ganhar tempo na prosa e no que mais viesse).

— Sim senhora, disse o lavrador com indisfarçável desconforto por ter sido interrompido em sua labuta.

Foram os goles mais demorados que Gegê se lembrou de ter tomado. Embora arguta sua tática, a conversa não ganhou substância no primeiro encontro.

Com o passar do tempo, entre idas e vindas, sedes saciadas, estratagemas mais eficazes, estreitaram relacionamento, desenvolveram afeição mútua, começaram a namorar. O pai da moça não gostou nada disso e tentava dissuadi-la. O esforço argumentativo se mostrava inócuo:

— Minha filha, o sujeito é um “zé-ninguém” e ainda se veste com desalinho, falava.

— Mas é um desalinho honesto, papai, rebatia.

— Você consegue coisa melhor, insistia o velho.

Não era bem verdade as palavras do patriarca. Gegê já não era tão mocinha; de estética acanhada, encalhara no mar da paixão; ao contrário do pretenso futuro marido que, apesar da imprevidência, guardava uma feição e compleição agradáveis. A constatação, partilhada pelo moçame da redondeza, principalmente aquelas desassistidas afetivamente, inquietava a donzela sugerindo uma pressa no agir.

— Papai, vou-me casar e pronto; tenho por direito o quinhão da mamãe, não é mesmo?

— Sim, de fato, disse o velho resignado.

A situação não era de toda ruim. O velho Petrúcio, idade avançada, fartas cãs, alquebrado pelo peso dos anos, com ferida aberta pela morte recente da esposa, obviamente não dispunha mais do viço de antes. Preocupado em faltar a qualquer momento, via no casamento da filha uma certa esperança de resgate da imagem dela e uma oportunidade de aquartelar o coração, ainda que fosse com uma versão piorada do Mazzaropi. “O que não tem remédio, remediado está”, passara a refletir desta forma pela absoluta falta de opção e de candidatos mais qualificados. Vencido, “concordou” com o enlace matrimonial. Ao espólio da sua viúva, somou suas tíbias economias e os ofereceu em dote ao pretendente. Decorrido um par de meses, deu-se o casamento. Petrúcio veio a falecer pouco tempo depois, por desgosto ou relaxação pelo “dever cumprido” ou um pouco de cada.

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O dote de Gegê fora providencial. A vida era feliz, todavia frugal. Com a morte do pai, a pequena propriedade da família foi vendida. Tinha dívidas que pelo o seu DNA foram encobertas pela vergonha de Petrúcio em admiti-las. A filha apenas soubera disso pela ocasião do inventário; credores pululavam, sacando suas promissórias, como se fora um roteiro de filme do velho oeste americano. O fato é que o velho, à socapa, entregara-se à jogatina e à bebida como fugas pelo falecimento da esposa amada. Praticamente todo o dinheiro apurado na venda do pequeno sítio, efetuada na forma de “porteira fechada”, foi usado para saldar tais dívidas e as despesas decorrentes do próprio inventário. Na prática, reafirmo o que disse antes: o dote de Gegê fora providencial.

Passaram-se anos: despesas adicionais, sensação de incompletude, arrefecimento do amor, o filho que não vinha. Gegê apreensiva; Era uma aspirante a jovem senhora. Lourival, compreensivo que era, dizia:

— “Não se apoquente querida. Deus dará a providência”.

Enquanto isso, a solidão a dois teimava em bater na sua porta. O que fazer?

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Em uma das raríssimas idas à venda do vilarejo, Lori deparou-se com “o rádio”. A década: de 1950. Nunca ouvira antes qualquer música, nem tampouco notícia alguma oriundas desse estranho aparelho. Lembrem-se, leitores: ele era trabalhador rural de exíguos recursos e de tempo livre ainda mais. Praticava agricultura de subsistência e o excedente, quando ocorria, era trocado ali mesmo, no meio rural, por algum outro produto que pudesse obter. O escambo ainda sobrevivia naquele pedaço de chão. Apesar das vicissitudes, conseguiu em tempo pretérito, às duríssimas penas, comprar uma diminuta casinha; não era bem “uma casinha branca de varanda” com “um quintal e uma janela”, mas tinha “um lugar de mato verde pra plantar e pra colher” e dava “para ver o sol nascer”. Munido de alguns suficientes cobres, rastilho do dote recebido no passado, que a mulher tanto insistira para que portasse, sucumbiu à lábia do comerciante e levou para casa o que para ele era o “enigmático-objeto-fazedor-de-som”, pensando mais no entretenimento de Gertrudes do que em causa própria.

No entanto, depois de devidamente apresentado ao aparelho em questão, a indiferença fora substituída por encantamento.

Novos anos se passaram; suas paixões alcançaram outras dimensões: a mais nova (radiofônica) aumentou a olhos vistos; a mais antiga (esponsal), ganhara contornos de admiração, respeito e carinho. O danado arrematara seu coração.

A situação financeira surpreendentemente melhorou, não me pergunte como. Como consequência, pode comprar um rádio mais moderno. Sua paixão merecia vestir roupa nova.

Quando tudo parecia encaminhar-se para uma concepção mais tranquila de vida, Gegê engravidou. “Nos estertores do seu ciclo fértil”, disse uma parcela dos médicos da região, 2 de 3. O último, o mais impressionado da tríade, proferiu sentença mística-ecológica: “verdadeiro milagre da natureza”. Gegê, não se importou com o que chamava de “filigranas perceptivas”. De origem mineira, apropriou-se do lema da sua bandeira natal e com viva sagacidade, mandou imprimir a imagem representativa, sem antes promover o necessário ajuste semântico. A partir de então, dada a notícia auspiciosa, todos que chegavam à sua casa podiam na parede ao lado do umbral, vislumbrar no quadro pendurado, ao redor do triângulo vermelho a seguinte inscrição, em latim, convenientemente modificada: “mater quae sera tamen ”.

Ela era só alegria, ele, jubiloso, demarcou novos limites para a sua paixão. O futuro filho já rivalizava fortemente com o seu rádio. Não tinha importância nenhuma, dizia: Ambos haverão de conviver em perfeita harmonia. Lourival só não sabia o quanto...

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Edgarzinho nasceu e cresceu com todos os mimos que poderia ter. A mãe, de início, não aprovou o seu primeiro nome; não estava no rol das predileções maternas. Foi a pertinácia do marido que a convenceu. Dizia ser uma homenagem a um certo homem importante do universo do rádio, pelo menos foi o que ouvira falar da boca do povo mais letrado da cidade. E olhe que a deferência poderia ter sido, por assim dizer, mais “emblemática”. O pai secretamente queria que o filho se chamasse Edgar Roquete, com um “T” apenas, ao contrário do original, pois o povo simples da roça não apreciava dobradura de letra. Segundo sua tese, nunca revelada, um nome assim conferiria respeitabilidade maior ao filho perante à sociedade. Era compreensível que desta forma pensasse. Embora nunca tenha confidenciado à esposa, a sua condição humilde, quase servil, cortava fundo a carne da alma. Não dispunha de nome importante, nem de fortuna, ou posição de destaque no meio em que vivia. Sentia-se humilhado com o fuzilamento social, que os olhares desdenhosos dos poderosos lançavam sobre si. Tal qual os avestruzes, enterrava sua cabeça na terra; enterrava mais: a enxada, as sementes de feijão, o orgulho, a vergonha auto imposta, ..., tudo.

Se tivesse contado o seu “drama pessoal” a Gertrudes, creio que lograsse êxito o seu intento, mas como não o fez, a honraria original no pensamento veio ao mundo mutilada: apenas Edgar; O “Roquete” deixaria para um improvável segundo filho.

Voltando a falar do filho, este passou sua infância, adolescência e os primeiros anos de juventude ao lado do pai, ouvindo tudo que a antena da relíquia da casa captava. Quando Lourival contou o motivo do seu prenome, subliminarmente desenvolveu um “sentimento de pertencimento” do mundo radiofônico. Aí é que o apreço à “caixa mágica de música e notícia” ganhou uma escala exponencial. Edgar chegou a dizer ao seu velho, mais de uma vez: “meu pai, ainda vou ser dono de uma estação de rádio”. Seu sentimento, contudo, não se alimentava da mesma dignidade do sentimento pátrio. Para o jovem, tratava-se de questão de afirmação pessoal, profissional, comercial, uma visão construída no pragmatismo, desnuda de romantismo. Para Lourival, ah, para o Lourival, devo-lhes dizer, o sentimento pelo rádio era de genuíno encantamento: a divinização pela divinização, nada mais. Numa abordagem filosófica, arrisco sintetizar o contexto das aspirações familiares ao binômio Ideologia versus Idealismo, não necessariamente nesta ordem. Por sorte, destino, conveniência (não saberia dizer), prosperou na família o pensamento “ edgariano”. O vaticínio antes feito ao marido da sua mãe, no curso do tempo materializou-se. Sob a ótica do Edgar (mais pragmática), foi melhor; senão como poderíamos contar um pouco da estória do empresário da comunicação sr. Rizzo, o próximo descendente desta família?

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Por falar nisso, vamos retomá-lo. Celso Rizzo estava, como se costumava dizer no tempo mais distante, “em palco de aranha”. Arcaísmos à parte, a situação sequestrava-lhe impiedosamente o sono e os escassos fios de cabelo: os “heróis da resistência”, auto referência jocosa ao seu território capilar. O seu anedotário hibernara, por conta da nova “ordem do dia”: a busca por uma saída imediata para a grave crise a qual atravessava sua rádio. Ocupava-se diuturnamente com esse calvário. Sua reserva financeira dos ótimos tempos das “vacas gordas” sangrava descontrolada e velozmente e já apresentava sinais de inanição. Avizinhava-se a falência? O legado da família seria sepultado? Cogitaria pedir uma concordata (hoje se diz recuperação judicial)? E se a solicitasse, qual seria o ônus? Como ficariam seus funcionários, fornecedores, seu dileto público ouvinte? A sociedade em geral? E seu Deodato, dona Esperidiana, e tantos outros ouvintes assíduos, digo melhor, amigos queridos desde os tempos do Edgar, o seu pai, e que mais do que os ouvidos, emprestaram à rádio a confiança, o respeito, a dedicação, a fidelidade, a esperança, uma parcela considerável das suas existências e que brevemente poderiam se tornar órfãos do único entretenimento que acreditavam para o epílogo de suas vidas? A “Ondas do Ar” não significava apenas uma estação radiotransmissora. Era a própria gênese da cidade, a expressão maior da sua cultura e do seu povo e o resgate da dignidade de incontáveis moradores. Desejava ardentemente uma solução para continuidade, mas nunca uma solução de continuidade

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Dirigia absorto pelas ruas: uma temeridade sob 4 rodas. Mesmo sabendo do risco que corria e que proporcionava aos inocentes pedestres e demais motoristas, na atual circunstância, o ato de guiar configurava-se em necessária terapia para o arejamento das ideias. O banco do carro: seu divã; o vento fresco: o psicanalista; as ruas, avenidas, praças e viadutos: o universo da reflexão; o trânsito: o dilema a ser equacionado. Dirigiu o automóvel com essa perspectiva durante um punhado de dias. O toque constante do celular, delatava a ausência forçada e inabitual da rádio. Providencialmente deixara gravado uma mensagem no celular dizendo mais ou menos assim: “por motivo de força maior, estou incomunicável; após o sinal deixe seu recado”. Mensagem vaga, mas “politicamente correta”. Era melhor não entrar em pormenores. Para que? Detalhes nesta hora só disseminariam o pânico. Malgrado muitos já desconfiassem, uma quase-certeza, a informação precoce, nesta situação específica, era inimiga da prudência.

Bum! Sobressaltado saiu do carro. Tamanha desatenção o fizera bater no fundo de um caminhão caçamba. Refeito do susto e com a feliz concordância do outro motorista, coincidentemente velho conhecido e remanescente anunciante da rádio (sobraram pouquíssimos), pôde observar que o dano felizmente fora de pequeníssima monta: na caçamba, imperceptível; no seu carro, tímido amassado. Um “martelinho de ouro” resolveria, quando quisesse que fosse o momento de se resolver. O mais irônico de tudo isso é que esse incidente de trânsito, que poderia agravar ainda mais os já agravados problemas, constituiu-se involuntariamente no divisor de águas para a salvação do negócio. A solução descortinava-se pela leitura da mensagem do para-choque do veículo: “Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”, frase atribuída ao famoso físico Albert Einstein. Mas claro! Como não tinha pensado numa coisa tão óbvia? Chegou a se constranger com sua estreiteza mental. Ludovico, o dono do caminhão, perplexo, deve ter pensado que o Rizzo era um pederasta que acabara de sair do armário. Explico-lhes: possuído por arrebatadora gratidão, afinal o homem foi o portador da “mensagem reveladora“, tacou-lhe um “beijo-de-estalar-bochecha”, entrou atabalhoadamente no carro e partiu azafamado para a rádio.

(Pelo celular, a caminho).

— Dona Beatriz (a secretária), reúna todo mundo para uma reunião de emergência, AGORA!

Chegou à empresa: Toda gente de olhos esbugalhados, respiração acelerada, mãos nervosas, suores, ..., tensão. Durante a vinda, ao falar com a secretária, também tinha dado ordem para que a rádio saísse temporariamente do ar. Queria na verdade que todos estivessem presentes desembaraçados de suas tarefas, mas na pressa não se fez melhor entender. Acho que a secretária teve uma privação de sentidos, (“surtou”) com a tal ordem e semeou uma espécie de “terrorismo informacional”.

— Calma pessoal, apaziguou todos. Tive uma ideia que pode revigorar complemente “nossa rádio” (era conveniente e principalmente motivacional que o pronome possessivo fosse empregado em 1ª pessoa do plural).

Ao evocar um sentimento de coletividade, de pertença, começara ali a ganhar a confiança sincera, o apoio incondicional dos funcionários para o grande projeto de reengenharia que seria marco, mudança de paradigma.

Celso Rizzo, homem austero, conduta de déspota esclarecido, recluso nas suas convicções, únicas que na sua avaliação mereceriam ser ouvidas e seguidas, passaria a se tornar uma pessoa melhor: paciente, cúmplice, solidária, motivadora, e tudo o mais que precisava ser. A partir daquele momento, saia de cena o “homem-máquina” e entrava em cena o “homem-humano”.

Foram quase 2 horas de um discurso que passou pela descrição honesta e racional de toda a crise, o drama por ele vivido, humilde reconhecimento do seu modelo ditatorial e ultrapassado de gestão, novas percepções, estímulo para que todos sem exceção, da faxineira ao diretor de programação, apresentassem sugestões inovadoras, e o principal: um apelo emocionado em tom de súplica para o engajamento de todos, incluindo família, amigos, a cidade se preciso, no projeto de salvação da “Ondas do Ar”.

A reunião foi um marco na história empresarial da pequena cidade de Esperança. O fato tornou-se domínio público. Novas e brilhantes ideias foram surgindo, surgindo e surgindo aos borbotões. Foi implantado no âmbito da rádio um modelo revolucionário no município: participação nos lucros e resultados, bônus por desempenho. Antigos anunciantes retornaram e novos foram conquistados. As receitas, por conseguinte, aumentaram, as despesas fixas passaram a ser fixas de verdade; as variáveis já não variavam tanto. A empresa saiu do buraco e em menos de 2 meses fechava o balancete com resultado significativamente positivo. Ah, ia esquecendo; foi feita uma votação para a escolha de um novo nome para a rádio. o vencedor? “Mosquiteiros”, ou melhor “Rádio Mosquiteiros”, cujo lema era o mesmo do livro do Dumas.

Outubro.

Novembro.

Dezembro.

Você pensa que acabou? Não! Por mais que eu os fizesse acreditar, o tema central dessa narrativa não é a estória do Gumercindo (o pretenso e malogrado “mecenas” do humor), ou do Lourival (o idealista de estatura moral elevada), ou do Petrúcio (o viúvo solitário cooptado pelo jogo), ou da Gertrudes (a mãe tardia), ou do Edgar “quase” Edgar Roquete (a “pedra fundamental” da rádio), ou do seu Deodato e Dona Esperidiana (dramas de consciência do Celso), ou do Ludovico (o caminhoneiro revelador), ou da Dona Beatriz (a secretária surtada) ou ainda do próprio Rizzo (o arrependido e transformador). Esses todos eu os criei para serem coadjuvantes. Alguns deles, confesso, bem que quiseram roubar o papel principal. Ganharam relevo ao longo da trama. Atrevo dizer que se tornaram em certa medida alados na imaginação do leitor e voaram ao encontro do sol. Coube a mim e à pena, derreter a cera das asas. Quem nascera literariamente para Ícaro, não podia pretender ser Dédalo (pelo menos nessa obra). O protagonista era, sim, o Anysio Aragão (o agora revelado locutor show). Eu tinha dado uma prévia, no relato de fundo psicológico no início desta obra. Conforme prometido, vou retornar à personagem central. Leitor, fique um pouco mais comigo e me acompanhe nesta estrada de letras até o final.

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Dezembro, mês consagrado à confraternização. Não me refiro exclusivamente à chegada do velhinho de barbas brancas e saco estufado de presentes ou ao nascimento do Messias com sua mensagem de salvação. É claro que devem ser celebrados, refletidos e exercitados, à guisa de cada um que me lê. O evento que desejo abordar é o de encerramento de ciclo, de balanço (não o patrimonial, mas o existencial), de fechamento das feridas abertas (as invisíveis), de imprescindível renovação da esperança, de retomada de fôlego, de conciliação com a vida e com os viventes.

Nesse contexto, o Anysio propôs ao Rizzo, que a agora “Rádio Mosquiteiros” promovesse e patrocinasse um jogo beneficente entre os acadêmicos da cidade (da Academia de Letras de Esperança) e os sócios do Clube da Poesia, com a renda toda revertida em favor de entidades assistenciais locais. Pleito deferido.

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A abertura oficial do verão trouxe consigo o “grande dia do jogo” (era essa a expectativa criada por todos). O narrador da partida como já se sabia desde o início foi o recém promovido a locutor titular Anysio Aragão.

Como já depreendido em linhas anteriores, o incipiente novo modelo de gestão da Rádio Mosquiteiros passava também pela nova forma de locução em sentido ampliado: um olhar irreverente, bem-humorado, satírico, poético; um falar inovador, envolvente, questionador, divertido; um ouvir permanente, sincero, solidário; um sentir intenso, abrangente, verdadeiro. Imbuído desta proposta, Anysio continuava esculpindo sua narrativa da partida com o cinzel do bom humor:

“Todas as famílias, sem exceção, ao virem entrar os times em campo, lançaram flores em direção aos jogadores: os Silvas, lírio; os Ferreiras, margarida; os Lacerdas, petúnia; ..., os Guimarães, rosa.

As pessoas portavam toda a sorte de objetos simbólicos: o Silvinho, flâmula; o Raimundo, santo de devoção; o Manuel, bandeira . Sobre este último cabe relatar um queixume: Manuel era natural de “Passar Bem”, cidade simpática do entorno geográfico, ou simplesmente “Passar” como gostava de se referir ao seu torrão. Tinha um amigo fraterno por lá: O Reinaldo, ou “Rei”, para os íntimos, como era o seu caso. O amigo tinha uma pequena confecção especializada em artigos esportivos como camisas, calções, bandeiras, etc. Por solicitação do prefeito esperantino, Manuel e sua noiva Ágata encomendaram para Reinaldo uma grande bandeira com as cores e o brasão do município. Só esqueceram de esclarecer um “pequeno detalhe” para o microempresário do ramo têxtil: a cidade homenageada era Esperança (local do jogo) e não “Passar Bem”, ou “Passar” (local da confecção). A encomenda ficou pronta e foi entregue a Manuel “em cima da hora”, num pacote fechado. Na confiança, Manuel preferiu não conferir ali o conteúdo, pois ele e Ágata, atrasados, estavam sendo esperados pelo prefeito Josué, no estádio de futebol. Quando lá chegaram, abriram a imensa bandeira e puderam constatar (Manuel, Ágata, o prefeito, a torcida, todos) a não menos imensa gafe cometida. Resumo da ópera: todos, revoltados quiseram “comer o fígado” do “ Mané ” (apelido propício para sua estultice). Ele, em polvorosa, começou a correr, bradando para sua noiva enquanto evadia-se. “Vou-me embora pra “Passar”, Ágata; lá sou amigo do “Rei”” . Pobre Manuel...

Anysio estava inspirado nesse dia de casos e causos (mais os segundos do que os primeiros). Ainda guardava fôlego para distribuir mais algumas “pérolas literárias imaginárias”, como por exemplo ao abordar o quesito segurança. Assim dizia a respeito: “A polícia era formada por homens intelectualmente privilegiados, não portavam revólver, só Machado: de Assis, de Lorena e da circunvizinhança, e, deste modo, se faziam respeitar”. Outra: Faltava música, onde estavam os instrumentos? Para muitos, a inspiração do evento esportivo carecia de tambor, trombone, pandeiro. Para o time dos poetas, bastava apenas a Lira. Disparou mais uma: o time dos “poeteiros” (não confundir com os praticantes da autossatisfação das necessidades menos nobres) e dos “literatos” convidaram atletas estrangeiros para jogar. Um deles o Francisco (ou chico), dos países baixos, compareceu. Ao notar o silêncio pela ausência dos instrumentos, sugeriu em forma de indagação: querem que eu traga “a banda”? Foram muitas, e muitas facécias emanadas de tão sagaz espírito. Mais tarde, quando a tarde, antes clara, claramente se encaminhava para o seu ocaso, teve tempo de resgatar para si, em tom saudosista, com os olhos marejados, uma lembrança marcante: recordou-se do seu pai, do esforço inglório e persistente em fazê-lo comediante. Mal soubera, o agora ausente Gumercindo, que fora pelas mãos do sorriso, ou melhor, pelas mãos do “Cel so-Rizzo” que o filho finalmente o redimira, ainda que de forma fanfarrônica.

O placar do jogo? Isso foi o que menos importou, o espetáculo de verdade veio da cabine de uma certa rádio, da garganta e da alma de um certo locutor. O dia cedera lugar à noite, findou-se, mas não morreu. Permaneceria vivo na memória e no coração de todos. Aquele dia certamente ficaria marcado como sendo o dia da “Melhor Transmissão do Mundo”.

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Trim! Trim! Trim! E o telefone da rádio nunca mais parou de tocar.

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© Leonardo do Eirado Silva Gonçalves

Setembro/Outubro de 2017

Leonardo do Eirado
Enviado por Leonardo do Eirado em 26/05/2018
Reeditado em 25/06/2018
Código do texto: T6346755
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