A noite em que escolhi viver

O secretário abriu a porta do gabinete para que Masabumi Hosono, um homem de estatura mediana e imenso bigode, entrasse. O ministro, sentado por trás de uma imponente mesa em estilo anglo-japonês, o encarou sem animosidade, o que já era um bom sinal. Os últimos meses não tinham sido nada fáceis para Hosono. Ele inclinou-se profundamente perante seu superior.

- Taihen moushiwake gozaimasen - declarou, ainda de cabeça baixa.

- Sente-se, diretor - respondeu o ministro, indicando-lhe uma cadeira à frente da sua mesa. E só então, Hosono percebeu que havia sido perdoado.

O ministro aguardou até que o subordinado tomasse assento, e discorreu calmamente sobre o motivo pelo qual mandara chamá-lo.

- Investimos muito dinheiro e tempo na sua carreira, Hosono. Você é um quadro valioso para o imperador... apesar da sua grave falta recente, que manchou o nome do Japão entre as nações ocidentais. Nem vou falar dos valores da sua própria pátria, porque imagino como deve estar sendo tratado por nossos concidadãos, após seu retorno.

Hosono apenas ouviu em silêncio, tentando não deixar transparecer a profunda vergonha que sentia.

- Mas, como eu dizia, não podemos perder o investimento feito em você, e os conhecimentos que amealhou ao longo dos últimos anos. A sua passagem pela Rússia, e a investigação realizada sobre o sistema ferroviário do czar, nos foram muito úteis. Decidi reabilitá-lo, para que possa prosseguir o seu trabalho no Ministério dos Transportes.

Ficou em silêncio, encarando Hosono com as mãos entrecruzadas. O diretor entendeu que era hora dele falar.

- Senhor ministro... fico muitíssimo agradecido pela oportunidade de servir novamente ao imperador... apesar da minha falta - declarou singelamente.

O ministro lançou-lhe um olhar de simpatia.

- Eu precisava mesmo dizer-lhe isso, diretor Hosono. Mas, como estamos a sós, tenho que observar que não vi nada de particularmente reprovável na sua atitude...

E como Hosono fizesse menção de retrucar, ergueu a mão para interrompê-lo e continuou.

- Imagine se você houvesse feito o que os ocidentais esperavam que fizessem... cedesse o lugar no bote para uma daquelas inglesas gordas. Lá teriam ido os seus conhecimentos para o fundo do oceano! Você fez o que um súdito leal ao imperador teria feito: protegeu os interesses maiores da pátria acima das convenções ocidentais... mesmo que tenha caído em desgraça após tal gesto.

E, perante o ar de incredulidade do diretor, prosseguiu:

- Pessoalmente, não considero a sua atitude mais reprovável do que a do executivo da empresa de navegação... o tal do Ismay. Se alguém deveria ter a obrigação moral de afundar com o navio, seria ele, não você! Li muita besteira sobre o seu caso nos últimos meses... houve até quem falasse em desrespeito ao código dos samurais... como se o código falasse algo sobre ceder lugar para mulheres em botes salva-vidas. Besteira!

Irritado, o ministro deu um tapa na mesa.

- Ocidentalizar o Japão, como bem o sabe, é questão de sobrevivência para nós, Hosono. Todavia, há quem tenha levado isso a extremos. Não vou admitir que um subordinado meu seja destratado, apenas porque considerou a sua vida mais valiosa do que a de qualquer hakuma!

O diretor apenas ouvia, cabeça baixa. Por dentro, contudo, estava exultante. Era a primeira vez em meses que sentia-se assim, desde aquela fatídica noite em que tomara a decisão de pular dentro do bote salva-vidas número 10, e abandonar o "Titanic", que afundava.

- [22-09-2018]