Sem testemunhas

- Perdi a eleição por causa da divulgação de notícias falsas, que enxovalharam a minha honra!

O visitante sabia que não deveria falar sobre corda em casa de enforcado, mas ele mesmo ouvira os tais rumores e estava mais do que curioso para saber como o prejudicado sentia-se a respeito. Mal, era a resposta óbvia.

- Você certamente ouviu as maledicências ditas sobre minha conduta na Batalha do Boyne, quando tive a honra de servir como general de cavalaria sob as ordens de sua majestade, o rei Jaime II... que teria me comportado de maneira covarde, o que é absolutamente inverídico!

O que o visitante sabia é que a batalha terminara com a derrota de Jaime II, o rei deposto, frente ao exército de Guilherme III, convidado pelo Parlamento inglês a assumir as coroas da Inglaterra e Escócia. Jaime II voltara ao exílio na França, e abandonara seus seguidores, o que muito os enfurecera. Nestas circunstâncias, nem chegava a ser surpreendente que um membro do Parlamento que houvesse apoiado o lado insurgente, perdesse o seu assento legislativo, mesmo que o evento em questão houvesse ocorrido há quase 10 anos. Mas seu anfitrião tinha outra explicação.

- Eu fui eleito por Bere Alston em 1694, menos de cinco anos após a Batalha do Boyne - recordou ele. - E naquela época, nenhum boato sobre meu comportamento em combate foi levantado.

E o que havia mudado desde então?

- Três palavras: Oliver Le Neve.

Le Neve, um cavalheiro da pequena nobreza rural de Norfolk, era um desafeto político do anfitrião. Imputar-lhe a divulgação de notícias falsas nem chegava a ser muito original. E o que o anfitrião pretendia fazer a respeito?

- Matá-lo - foi a resposta seca, acompanhada de um sorriso sardônico.

* * *

- Duelo?

- Até a morte, senhor.

Le Neve releu a carta que um mensageiro de Blickling Hall, residência do seu adversário político, viera lhe entregar. O homem exigia reparação, paga com sangue: o sangue dele, Le Neve. Não adiantara dizer que ele nada tinha a ver com a divulgação dos boatos desabonadores, nem com a sugestão de que informasse o nome do verdadeiro ofensor para que fosse tirar satisfações em nome do ofendido. Para o seu adversário, o maledicente chamava-se Le Neve.

- Que seja, então - disse resignado Le Neve. - Diga ao seu senhor que escolha o local e as armas, que eu lá estarei.

Ao serem informados da notícia, os amigos do desafiante deram a disputa como ganha. Afinal, o ex-general de cavalaria era um exímio espadachim.

- E quem terá a honra de ser seu segundo? - Perguntaram-lhe numa roda de conversa no salão senhorial.

- Não haverá segundo - declarou ele para surpresa geral. - Nem da minha parte, nem do desafiado. Duelos são formalmente proibidos por lei, e quem deles participar, mesmo como segundo, pode ser considerado cúmplice. Não quero que meus amigos sejam acusados de auxiliar num assassinato...

Os presentes deram boas risadas, perante a disposição homicida do anfitrião.

* * *

E num belo sábado ensolarado, 20 de agosto de 1698, os duelistas encontraram-se num campo deserto em Cawston Heath.

- Então, vai ser até a morte? - Indagou Le Neve, mão esquerda no cabo da espada, ao ver chegar o adversário.

- Apenas o seu sangue poderá lavar a minha honra - retrucou ferozmente o oponente, sacando a sua rapieira.

As espadas entrechocaram-se. Le Neve sentiu que não seria páreo para o adversário ao ser atingido no braço direito, sem gravidade. Girou o corpo, e ao arremeter, a rapieira do desafiante furou seu capote. Aproveitando sua única oportunidade, Le Neve mais do que depressa prendeu a espada sob o braço direito e deu uma estocada precisa, direto na barriga do adversário. Este olhou com horror para a mancha de sangue em seu ventre, e caiu, de joelhos. Vendo que o oponente não se ergueria mais, Le Neve fez-lhe uma vênia e declarou:

- Eu vou buscar ajuda.

Cumpriu o prometido, mas não ficou para ver o desfecho da história. Sabia que, se o oponente morresse, sua cabeça estaria a prêmio.

No dia seguinte, efetivamente, o senhor de Blickling Hall veio a falecer.

- [07-11-2018]