Um andarilho na estrada
 
Foi numa espécie de delírio que estive a imaginar dentro de meu carro, sentados no banco de trás, um presidiário, uma prostituta e um andarilho. Uma imaginação assim não é fortuita do ponto de vista psicológico. Ela poderia explicar o desapego a normas e convenções e o amor à liberdade. Acho que nesse momento era nisto mesmo que eu pensava, pois, não mais que de repente, lá estava um deles: o andarilho! Muitas semanas depois tive a nítida impressão de ter visto este mesmo andarilho na Zona da Mata.

 Eu estava em Brasília de Minas e é incrível que eu já tivesse rodado perto de uns três mil quilômetros de estrada, em regiões diferentes, e ainda não tivesse encontrado nenhum deles. Sempre tive pelos andarilhos uma admiração particular por seu caráter digno e altivo. Eles não imploram, rastejantes, nem se humilham facilmente. Só no derradeiro minuto de suas carências materiais é que pedem uma sobra de comida, sem muitos agradecimentos. Mas nossa sociedade restritiva, que impõe condições de subserviência a quem julgamos em inferioridade, não perdoa a um sujeito a dignidade no pedir. Prezamos em demasia o conceito da humildade. Não desejamos ver um generoso e altivo Quixote, preferimos um servil Sancho.

De repente, ali estava a vítima de minha curiosidade como uma caça na minha alça de mira. Andante solitário, insensível ao sol e às tempestades, auto-relegado ao silêncio. Serão loucos, no sentido estrito da palavra, e por isso puseram-se a vagar sem destino certo, como aves migratórias que perdem sua rota? Serão rebeldes sociais, inconformados com os rígidos padrões de moralidade, com os códigos não-escritos da hipocrisia do comportamento humano? Serão visionários, pessoas que crêem naquilo que os mortais comuns não podem alcançar, como o valor do desprendimento aos bens materiais.

O que eu tinha agora ao meu alcance era um andarilho de verdade. Estacionei o carro a uns quinhentos metros à frente e ajustei as lentes de minha câmera para fazer uma foto em preto-e-branco digna de Sebastião Salgado. Achei que fosse um momento raro, sob aquele sol de rachar o crânio, numa paisagem absolutamente agreste. E o homem tosco, esguio com o príncipe etíope de Nelson Rodrigues, caminhando resolutamente, com sua mochilinha estrepada numa vara, como se tivesse um destino certo. Preparei-me para o grande momento e, mentalmente, inventei uma lista de perguntas, como se fosse um repórter inexperiente em primeiro dia de emprego: “O senhor veio de onde? Há quantos anos está na estrada? O que espera do dia de amanhã?”

Mas quando ele se aproximou, com o olhar sempre fixo na linha do horizonte, ereto, digno, apressado, sem dar a mínima pela presença de um carro e de um estranho, tive o meu momento de culpa. Com o sentimento de estar sendo invasivo, apenas o observei passando com sua indiferença. Fiquei sem saber o que ele come, com o que se agasalha, como se protege da chuva e dos cães, onde dorme. Fiquei sem saber se ele tem desejos bem catalogados como nós ou se vive somente à base de instintos. Fiquei sem saber que ideia faz do futuro e se tem perspectivas, se ele se sente um homem ou um o quê. Talvez eu até perguntasse em quem ele votaria para Presidente da República. Seria no Fernando Henrique?

 Tive vontade de perguntar se ele precisava de alguma coisa. Provavelmente não me ouviria. Ele aceitaria um carona? E o cheiro dele, seria excessivamente incômodo? Mas que diabo! O que acontece com um sujeito como eu, que, em vez de pensar na Sharon Stone, fica pensando nestas bobagens? Seria eu a próxima vítima da loucura? Pensei em muitas coisas no breve momento em que ele passou por mim, fingindo não tomar conhecimento de minha presença. Mas foi inútil: um tique nervoso o traiu e à sua altivez de cacique. Piscou os olhos, nervosamente, e tossiu.

Era um pássaro raro, em vias de extinção, passando para nunca mais voltar. Mentalmente desejei-lhe sorte, religuei o carro e segui em frente.

(in: CONHECENDO MINAS - Poeira na Estrada e Becos Apertados. Inédito)
 
[1] Este despojamento, que se incorporaria depois definitivamente como parte de minha personalidade, foi notado ali pela primeira vez quando percebi que meus pertences, deixados na minha casa, se roubados não me fariam falta.

 
Cornélio Zampier Teixeira
Enviado por Cornélio Zampier Teixeira em 18/01/2019
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