PRAÇA DE GUERRA

São Bernardo do Campo, novembro de 1980. A Rua Marechal Deodoro no centro está repleta de gente. As lojas, assim como todo o comércio atendem homens, mulheres e crianças que fazem compras para as festas de fim de ano com o esperado dinheiro do abono salarial.

Uma mulher está dentro de uma loja olhando roupas de crianças. Ela está acompanhada de seus dois filhos, um garoto de sete anos e uma menina de três anos. Do lado de fora da loja um barulho de fogos, bombas, tiros ou algo parecido que chama a atenção das pessoas no comércio, fazendo com que estas vão para as calçadas a fim de ver o que está acontecendo.

O que se vê são pessoas correndo apavoradas, chorando, gritando, enquanto ao longe é possível ver policiais militares montados em seus cavalos atirando bombas e partindo para cima dos passantes. O cenário é de muita fumaça, efeito das bombas lançadas pelos guardas nos que correm sem destino pela rua. Tudo parece uma praça de guerra.

As portas das lojas e de todo o comércio começam a abaixar desesperadas. Os comerciantes com medo acabam não dando abrigo àqueles que correm e tentam se proteger. A mulher que tem um braço cheio de sacolas segura a mão do filho, enquanto no outro braço carrega a bolsa e a menina no colo. Ela também começa a correr.

Um homem de aparentemente seus cinquenta anos surge correndo mostrando cansaço e ao passar por essa família, olha e diz quase num apelo: corre moça! Corre! A mulher tem no rosto um sorriso amarelo e responde: tem que correr! Tem que correr!

O mesmo sorriso vai em direção ao filho assustado na tentativa de acalmá-lo e olhando bem nos olhos apavorados do filho diz: corre filho! Vamos correr! O sorriso no rosto da mulher não é o mesmo que o menino está acostumado a ver no rosto de sua mãe. Há algo de estranho, diferente, assim como os olhos dela estão diferentes. A mulher continua a correr como todos o fazem, pois seu único objetivo é chegar a sua casa e ver seus filhos em segurança.

Enquanto corre o menino pergunta por que a polícia está fazendo aquilo? Por que está atirando nas pessoas? A mãe responde que estão atirando nos grevistas, querem prender aqueles que estão fazendo greve... Prender os grevistas? Mas meu pai também faz greve. A polícia não prende bandido? Será que meu pai é bandido? Mas meu pai trabalha. Meu pai não é bandido. Ou será que é?

De repente é como se o som de tudo desaparecesse. O que se vê são pessoas correndo em meio a toda aquela fumaça, mulheres e crianças chorando buscando abrigo dentro de quintais, atrás de bancas de jornal, homens correndo se esquivando da polícia, guardas a pé que batem em pessoas com gritos surdos, enquanto outros guardas avançam com seus cavalos e seus cassetetes em cima dos cidadãos aflitos. Há também aqueles que parecem assistir a tudo alienadamente.

Em uma das casas o quintal foi invadido por pessoas que entraram para fugir dos cassetetes dos policiais, enquanto um homem, um fotógrafo ao mesmo tempo em que parece ignorar tudo aquilo que acontece ao seu redor, tenta se equilibrar em cima do portão baixo e registra aquelas cenas de terror com a sua câmera.

Hoje, o menino tenta analisar melhor o que aconteceu naquele fatídico dia. O menino agora entende que a polícia perseguia gente que apenas lutavam por seus direitos trabalhistas, gente que não eram bandidos, que apenas buscavam melhores condições de trabalho e dignidade para as suas famílias, gente como sua mãe que estava ali apenas a passeio com seus filhos. Entende também que enquanto a sua mãe sorria em uma forma de tentar acalmá-lo, os seus olhos continham medo, preocupação e insegurança por estar exposta com seus filhos naquele cenário de guerra onde precisavam correr da polícia, a mesma polícia que deveria estar protegendo os cidadãos. E se uma daquelas bombas a tivessem acertado ou a um de seus filhos? E se ela não tivesse conseguido chegar a sua casa com seus filhos como acontece em tantos casos que ouvimos nos noticiários de TV? E se tudo acontecer de novo?

O menino também entende que diante de todo progresso nesses mais de trinta anos que se passou, a humanidade regrediu em sua forma de pensar. Com a falta de educação e bom ensino nas escolas a situação atual de seu país é crítica. O avanço tecnológico encheu a cabeça das pessoas de futilidades fazendo com que as mesmas parassem de pensar por preguiça ou conformismo. A palavra democracia foi incutida na cabeça das pessoas para que essas não fizessem tantas perguntas, não buscassem tantas respostas, não pensassem tanto. A geração de filhos superprotegidos pelos pais que viveram àquela época pede a volta de uma ditadura militar, como se ela não houvesse deixado marcas, mesmo que superficiais. E a possibilidade desse retorno fica claro nas urnas eleitorais, através da maior arma que o povo possui. O direito ao voto. Voto esse que elege partidos opressores que tornaram a vida de muitos brasileiros um grande pesadelo real em um passado pouco distante.

O medo que sentiu naquele dia de novembro de 1980 volta hoje com entendimento. Tem grande receio de que suas lembranças se tornem atualidade. Receio de sair à rua seja para fazer compras ou para um simples passeio e ser abordado por guardas civis com seus cavalos e suas bombas de gás lacrimogênio. Ver seus filhos passarem por todo terror vivido naquele dia e assim sentir na própria pele todo o pavor que sua mãe carregava nos olhos e que até então ele não sabia identificar, mas agora que é também é pai consegue compreender.

O menino por mais que se esforce não consegue se lembrar de como acabou tudo aquilo, como chegou à sua casa são e salvo com sua mãe e sua irmã pequena, mas sabe que as imagens registradas pela câmera do fotógrafo que tentava se equilibrar no portão daquela casa ficaram gravadas e guardadas, assim como todas aquelas cenas vividas ficaram na cabeça daquele menino de sete anos e que até hoje não saíram da minha memória.

Marcelo Monthesi
Enviado por Marcelo Monthesi em 11/03/2019
Reeditado em 04/04/2019
Código do texto: T6595670
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