Saco de pancadas

Quando voltei da cena para o escritório lá pela hora sétima, meu sócio, Tertius Acilius, me fez uma pergunta que atrapalhou minha digestão:

- Alugamos fármacos?

- Perdão? - Indaguei, imaginando que ouvira mal.

- Fármacos, você sabe - repetiu ele, abrindo as mãos. - Para rituais.

- Estamos em Ebora Cerealis, Lusitânia, não num vilarejo perdido na Grécia - retruquei, gelidamente. - Pessoas civilizadas não alugam fármacos.

Sentei-me em frente à Tertius Acilius. Ele estava sorrindo.

- Depende de quem seja a pessoa civilizada... e de quanto ela esteja pagando.

Agora eu percebi que o sorriso era de ironia.

- Negócios são negócios, meu caro - comentou ele, placidamente.

- A Caligo Psicopompos já se meteu numas situações bem esquisitas - reconheci. - Mas nunca alugamos fármacos... eu diria que isso mancha a nossa reputação.

- Você conhece Eurídemo de Mileto? - Indagou meu sócio.

Não, eu não conhecia.

- É um investidor grego, do mercado de cereais. Mudou-se para Ebora faz uns dois meses, comprou uma vila nos arredores da cidade...

Eu não era muito de ler as colunas sociais. Ou o caderno de negócios dos jornais locais, a propósito.

- Pois Eurídemo tomou conhecimento dos nossos serviços e decidiu contratar-nos para realizar uma limpeza espiritual em sua propriedade - explicou Tertius Acilius. - Normalmente, nós dizemos que tipo de trabalho deve ser feito, mas o grego insiste que haja um fármaco como parte do ritual.

Suspirei.

- Se bem me lembro, fármacos só são utilizados em situações extremas... guerra, fome, praga. Que tipo de catástrofe abateu-se sobre este grego para que ele queira usar um recurso tão drástico?

- Drástico? - Replicou Tertius Acilius. - Ele não pediu um sacrifício humano! Ocorre que perdeu um bom dinheiro na bolsa de cereais e culpa seus concorrentes pelo ocorrido. Mau olhado.

Ergui as mãos.

- Mas um fármaco, até onde eu me lembro...

- Outros tempos - atalhou meu sócio, sem me permitir concluir. - Um apedrejamento básico, um pouco de espancamento, e tudo está resolvido.

- Veja lá o que estão aprontando. Não quero ir parar nas mãos dos Vigias... - alertei.

- Ninguém aqui quer ter problemas com as autoridades - assegurou-me Tertius Acilius.

- E o que quer que eu faça? - Indaguei, já prevendo a resposta.

- Que consiga um fármaco.

E, dedo em riste:

- Um bom fármaco.

* * *

Um bom fármaco, pensei. Como era isso de "bom fármaco"? Um fármaco, por definição, é alguém abandonado pela sorte; um perfeito bode expiatório. Perguntei isso àquela noite ao meu servo, Tálos, ex-escravo a quem eu libertara - e que continuava ao meu serviço.

- O patrão precisa de um bom fármaco? Eu posso conseguir um - jactou-se ele.

O fármaco em questão era um profissional; de teatro, mais especificamente. Chamava-se Símbio, e, coincidência das coincidências, também era peregrino e grego de nascimento.

- Símbio pode fazer o papel de qualquer tipo de fármaco que o patrão deseje - assegurou Tálos, enquanto despejava água quente numa bacia para lavar os meus pés.

- Nunca passaria pela cabeça que existiriam fármacos profissionais - comentei.

- Mas patrão... se existem carpideiras, por que não fármacos? - Ponderou ele.

Bem lembrado, Tálos.

* * *

E na manhã do internundino seguinte, dada a importância conferida por Eurídemo de Mileto ao ritual, comparecemos eu e meu sócio à frente de sua imponente vila, revestida de mármore branco importado de Carrara. Nós e nosso fármaco de aluguel, Símbio, que viera com uma venda nos olhos (cego) e um cajado nas mãos (coxo).

- Um bom fármaco! - Avaliou o contratante, esfregando as mãos. Depois, abriu as portas da vila, e por ela saíram cerca de uma dúzia de gregos vestidos de branco, todos carregando porretes.

- Você não havia dito que essa coisa do fármaco era puramente simbólica? - Cochichei ao ouvido do meu sócio.

- Calma que está tudo sob controle - retrucou ele.

Começamos o ritual invocando Dioniso, o deus do inesperado, e depois a proteção de Hermes, deus do comércio. Afinal, se os clientes eram gregos, os deuses deveriam estar de acordo. E, finalmente...

- Pau no fármaco! - Exclamou Eurídemo.

Símbio não teve a menor chance: foi cercado pelos celebrantes e estava sendo duramente espancado, quando...

- Vigias! Ninguém se mexe! - Gritou uma voz.

Um autocineto dos Vigias havia parado no meio da estrada que levava à vila de Eurídemo. Os gregos interromperam o espancamento, ao ver que dois oficiais haviam desembarcado do veículo.

- O que está acontecendo aqui? - Indagou um dos Vigias, arma em punho.

- É uma cerimônia particular - alertou Tertius Acilius.

- Está parecendo um ritual de fármaco - retrucou o Vigia, sem baixar a arma. - Os quais, aliás, são proibidos pela legislação criminal em vigor. Vocês estão querendo ir em cana?

- Não é um ritual, oficial - reiterou meu sócio, mãos erguidas.

- E esse homem no chão, como explica? - Insistiu o Vigia. - Terei que levá-lo, para averiguação... e ai de vocês se ele disser que fazia parte de um ritual de fármaco.

Os Vigias levaram o pobre Símbio, provavelmente para o valetudinário de Ebora, onde ele receberia os primeiros socorros.

- Foi tudo combinado com os Vigias - cochichou Tertius Acilius ao meu ouvido, antes de dirigir-se ao contratante:

- O ritual foi cumprido! A maldição foi quebrada!

Eurídemo deu de ombros.

- Considerei válida... o fármaco levou uma bela surra. Você terá seu pagamento, psicopompo.

No caminho de volta para a cidade num taxiraeda, fiz Tertius Acilius jurar por Dioniso que nunca mais iríamos nos meter no perigoso negócio de aluguel de fármacos. Até ser registrador de maldições era menos indigno do que aquilo.

- Pegou pesado - retrucou ele, jurando solenemente.

- [20-03-2019]