Sobre Mísseis e Salsichas

“A União Soviética fabrica mísseis assim como fabrica salsichas.”

Nikita S. Khrushchov

Os soldados marchavam como se fossem um só corpo, vez ou outra, em total sincronia, faziam mecânicos movimentos exibindo suas kalashnikovs – orgulho do país – e o público aplaudia, aplauso também sincrônico e mecânico, como se toda a energia que vinha desde os soldados contaminasse a todo o ambiente, todo o mundo parecia ajustado como um relógio suíço. As tropas, com seus uniformes cinzas com linhas vermelhas na gola, nos pulsos e no bolso, seguiam desfilando, e logo passariam os blindados, os tanques, os misseis. Igor aguardava os misseis, misseis tão potentes que poderiam cruzar todo o mundo e chegar até a América! Eu sou bastante diferente de Igor, e diferente de quase todos, e sempre me assustei com essas demonstrações bélicas. Não sou homem de violência, apesar de ser algo romântico e interessar-me de sobremaneira pelas histórias de duelos ou aventuras em que caubóis e índios trocam tiros sem descanso. Mas é isso, ficção, aqueles mísseis pareciam bastante reais. Uma moça loira – a verdadeira beleza eslava – talvez conhecida de Igor, acenava em nossa direção, meu amigo mantinha-se concentrado no desfile. “Logo aparecerão os mísseis!”, disse com bastante comedida excitação. Como duas pessoas como eu e Igor eramos amigos? Chega-se a uma fase da vida em que não se escolhe realmente os amigos, talvez nunca os escolhamos, o principal responsável pela amizade, seja qual for, é tão somente o simples acaso. Por acaso trabalhávamos na mesma repartição, por acaso nossos filhos estudavam no mesmo colégio, por acaso eramos ambos torcedores do Spartak. Casualidade fez-nos amigos, e se eu tivesse nascido na América, provavelmente teria um amigo chamado John, ou se vivesse na França meu amigo seria algum Pierre, ou mesmo aqui na Rússia, se eu trabalhasse no restaurante em que almoço de vez em quando, meu amigo provavelmente seria Yuri, o simpático garçom que sempre nos atende. Yuri? O nome dele é Lev. Não importa, o que importa é que milhares ou milhões de pequenas casualidades fizeram com que eu me tornasse amigo de Igor Nikolayevich Ignashevich, garanto, aliás, que se pudesse escolher, preferiria ser amigo de Yuri ou Lev ou seja lá como se chame o simpático sujeito que sempre nos atende. “Os misseis!”. Quando Igor se emocionava esfregava as mãos pelos bigodes muito negros, gesto que o deixava mais palerma que o normal, atitude tão infantil em um homem tão forte era algo que me desanimava profundamente. “Que diabo, Igor! Diabo! Por que todo mundo está tão contente? Esse mísseis poderiam muito bem servir contra nós mesmos!”. Não tinha o costume de falar, era falta de costume, só isso pode explicar a maneira rude em que me coloquei diante de meu amigo. Falar é algo que requer prática, os tagarelas nunca se equivocam quando abrem a boca.

-Não gosta dos mísseis? O orgulho da nação?

-Eu disse que eles poderiam muito bem ser usados contra nós. Fico nervoso nessas manifestações.

-E que há de mal se eles fossem usados contra nós? Para isso eles servem.

-Como?

E sem desviar os olhos dos mísseis que desfilavam alegremente sob a mirada de incontáveis russos orgulhosos, Igor explicou seu curioso ponto de vista:

-Veja só, o país é uma mãe, quantas vezes escutamos pátria mãe? E me parece bem que a pátria seja uma mãezinha, mas o Estado não poderia ser uma mãe, mães são demasiadas condescendentes com seus filhos. O Estado é um Pai! Há alguns anos, no inverno, eu fiz uma mal criação, coisa de criança, entrei em casa sem antes limpar minhas botas. Naquela mesma noite meu Pai me deixou durante várias horas do lado de fora da casa. Vinte graus negativos, camarada, eu quase morri congelado.

-Nossa!

-Mas ele fez muito bem.

-Mas por que ele fez algo tão monstruoso?

-Porque ele podia. Ele era muito mais forte do que eu, era o direito dele fazê-lo, e se não o fizesse, eu o desprezaria profundamente. Ele estava me educando.

-Mas você podia ter morrido, meu bom Igor!

-A severidade da punição foi extremamente importante. Como te disse, eu era fraco e ele muito mais forte. Se ele puniu seu próprio filho de maneira tão dura, imagina só o que aquele homem seria capaz de fazer caso algum ladrão invadisse nossa casa?! A sua força me punia, é verdade, mas era a prova de que ele seria bastante capaz de me defender de qualquer ameaça externa que o mundo viesse a oferecer contra mim, que na época não era nada mais que uma frágil criança. Esses mísseis são a força de um Pai, que não exita em educar seus filhos, mas são ainda mais potentes para defendê-los!

Igor seguiu falando por horas e horas, durante toda a parada militar, acredito que já não estava falando comigo, o mais provável é que estivesse falando consigo mesmo, o que, a meu ver, era a sua melhor plateia. A noite caía, e com ela, um frio dos diabos.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 03/05/2020
Reeditado em 03/05/2020
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