Um cavaleiro desconhecido e perigoso chega a cidade de Bodie Hills para uma missão especial: evitar o enforcamento de um bandido famoso, mas acaba encontrando a resistência do juiz do lugar. Se você não leu a primeira parte deste conto, clique AQUI.

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ANGUS DOONLEY
UM CONTO DE FAROESTE 
Parte 2
  — Você está me chamando de mentiroso, reverendo?
  Os três guarda-costas engoliram os sorrisos de deboche. Ficaram atentos como cobras em posição de ataque.
  O juiz não respondeu. Olhou para o cinturão caído na cintura do outro. Aquilo, de fato, inspirava respeito. Preferiu dar atenção ao papel em mãos. Ficou pensando por um instante visivelmente contrariado. De repente, um brilho nos olhos trouxe-lhe um sorriso leve de esperança no rosto.
  — Espere aí. Se ele é o Billy the Kid... então, podemos enforcá-lo por assassinato! A lei dos homens é bem clara sobre isso – disse triunfante.
  — Infelizmente não é o senhor quem decide isso. Como já disse, tenho ordens de levá-lo aos tribunais do Novo México
  A raiva tomou conta do reverendo outra vez. Olhou para o rapaz ao lado da forca.
  — O sodomita deveria agonizar na ponta daquela corda, isso sim – disse apontado o dedo para o cadafalso enquanto olhava enfurecido para o delegado - e depois deveria ficar sentado ao lado do seu companheiro degenerado para servir de exemplo para os mesmos de sua laia disfarçados nesta cidade. Vou descobrir todos eles. Ah, vou sim! Terão uma punição adequada.
  Angus não quis comentar, limitou-se a observar os guarda-costas com atenção, principalmente Clay Pickett. Leroy, inconformado, ainda conferiu outra vez o documento e fez um gesto para o gigante armado com uma velha carabina de caça ao lado do condenado.
  — Big Jim, mande o depravado para cá.
  Pela primeira vez, o marshal pôde relaxar um pouco e dar maior atenção ao jovem. Constatou a imensa tristeza que lhe cobria o semblante. Antes de tomar o rumo da escada para descer do palanque, Charles Gray hesitou um instante. Queria olhar o rosto do enforcado naquela posição ridícula sentado na cadeira. Angus, por experiência de anos em situações daquele tipo sentiu, de súbito, uma pressão perto do ouvido. Era seu instinto enviando-lhe sinais de perigo.
  — Billy, desça logo! – Pediu em tom de urgência.
  Os olhares se voltaram para o condenado lá em cima do cadafalso parado, encurvado pelo abatimento a examinar o xerife morto. Ouviu-se a voz do juiz ecoar por toda a rua.
  — Desça logo sodomita. Nós não temos o dia todo.
  O rapaz, contam-se nas histórias de saloon, atirou um olhar ansioso na direção de Angus como a lhe pedir algo. Em seguida, voltou a fitar o defunto com muita reverência. Dos seus olhos espalhavam-se lágrimas abundantes de profunda comoção.
  — Ele está morto, herege! Não dá pra fazer mais nada com ele. – Gritou alguém seguido por xingamentos dos demais em meio a multidão.
  De repente, levado pelo impulso, o rapaz se inclina e dá um beijo demorado no rosto do xerife morto. Da multidão ecoa um “Ohhhhh” de indignação.
  Os fatos daí por diante viraram história no povoado de Bodie Hills por décadas. Alguns afirmam ter acontecido tudo muito rápido. Outros, de memórias mais vívidas, contam a tragédia de ângulos diferentes, compondo uma descrição mais elaborada para pintar o drama daquela manhã friorenta em detalhes, pedaço por pedaço.
  Dizem que o reverendo Leroy ao presenciar um ato de sodomia acontecer bem diante dos seus olhos, incitado pelos protestos dos mais indignados, não conseguiu suportar a humilhação na presença do seu rebanho de fiéis. Enfurecido pela afronta, clamou em nome de Deus que o apóstata não podia viver. Cego pela raiva, encaminhou-se decidido na direção do palanque de execução. No caminho, arrancou o rifle das mãos de Clay Pickett. As pessoas assustadas abriram-lhe caminho.
  — Reverendo, pare! Não faça isso – advertiu Angus em voz firme, sem sair do lugar, porém cuidando de alavancar o cartucho do seu rifle para prover a munição na culatra.
  Nas histórias sempre pairam dúvidas em explicar se, por causa do barulho alto da multidão, o juiz não ouviu o forasteiro ou, se ouviu, não quis dar a devida importância à ameaça. O fato é que as pessoas se voltaram para aquela figura enorme caminhando decidido, armado, na direção do estrado de execução, inclusive os seus guarda-costas curiosos.  A quatro metros do tablado, o religioso levantou o rifle e apontou para Charles Gray que, para a surpresa de todos, encarou a arma sem medo. Quando ele destravou o gatilho para atirar, ouviu-se o estampido seco de outro rifle. Na mesma hora, o tampo da cabeça do reverendo, um pouco acima da nuca, estourou em uma explosão de vermelho. Na testa abriu-se uma pequena flor encarnada por onde os respingos de sangue e pedacinhos de cérebro dele foram parar na madeira do cadafalso. O corpo do velho inclinou-se à frente como uma enorme árvore cortada, desabando com a cara na neve. 
  Silêncio absoluto da descrença. Os cidadãos espantados voltaram-se para Angus ainda com a coronha do winchester apoiado no ombro ao fazer mira. 
  — Eu avisei para ele parar – disse posicionando outra bala na culatra do rifle com uma rapidez extraordinária.
  Os guarda-costas olharam atônitos para ele. Clay Pickett já estava com as mãos próximas dos coldres. Big Jim, aparvalhado, não entendeu muita coisa, contudo manteve a velha carabina de um tiro apontado na direção do delegado. Os outros dois ajudantes mantinham os rifles levemente voltado para o chão.
  — Muito bem, rapazes, agora vocês precisam ter muita calma se não querem morrer – recomendou o oficial da lei olhando para os três na sua frente. As pessoas, como se entendesse o recado de modo indireto, foram se afastando bem devagar o mais longe possível do local da encrenca.
  Angus tinha um obstáculo para superar nos próximos segundos: precisava largar o seu rifle porque, apesar de ser um modelo rápido de repetição por alavanca, era muito lento para dar conta dos três à sua frente se eles resolvem encher-lhe de chumbo.
  O silêncio tenso já começava a incomodar quando alguém na turba falou alto.
  — Ele matou o reverendo Willian para defender aquela aberração!
  — Isso não pode ficar assim – instigou outra voz irritada.
  — Não podemos aceitar esta afronta. Matar um homem de bem para defender um pervertido. Isso não está certo.
  Vozes variadas de mulheres e homens começaram a se avultar em uma nova onda de protestos, desta vez pedindo por vingança.
  — Tenham calma rapazes. Muita calma.
  O marshal conhecia a pressão. Costumava sentir o nervosismo de alguém movido pela adrenalina. Analisou o semblante de Clay Picket. Percebeu nele a vontade de ser o herói da cidade. Por isso, resolveu contemporizar e começou a desviar o rifle para o lado bem devagar.
  — Vejam, rapazes, não quero atirar em mais ninguém.
  Angus já estava com o seu rifle totalmente na horizontal em paralelo com sua barriga, sem tirar os olhos do xerife recém empossado.
  — Vamos conversar. Não quero briga, senhores!
  — Pega ele, Clay – instigou alguém no meio do povo.
  — Sim, ele matou o reverendo, pega ele.
  Os três homens se olharam para confirmar se iam vingar ou não a morte do reverendo. O Bigode assentiu levemente com a cabeça. O Jogador de poker levantou uma das sobrancelhas inquieto. Sinal que não esclarecia muita coisa. Quando Angus observou Clay Pickett jogar o peso de uma perna para outra, não precisou de mais informação para saber o rumo dos acontecimentos: eles iriam abrir fogo contra ele sem considerar se estavam diante de um homem da lei ou não. Lá em cima, no tablado, a carabina de Big Jim apontava para ele também.
  À vista disso, sem muitas opções, ele decidiu tomar a iniciativa. Em um gesto displicente, jogou o seu winchester para Clay Pickett como se fosse entregá-lo.
  — Pega, ele é seu.
  Naquele instante, Clay ao invés de sacar o seu revolver como havia pensado, por instinto de reflexo, recebeu o rifle e, antes até da arma chegar-lhe às mãos, não conseguiu entender como os dois colts do forasteiro em ambos os lados da cintura dele sumiram dos coldres e foram parar nos seus braços esticados.
  Os quatros homens partiram para a ação quase ao mesmo tempo. Os estampidos das armas ecoaram na rua, seguidos de fumaça e cheiro de pólvora. Bigode levou o primeiro tiro no meio da testa, não chegou a levantar a sua arma, dobrou as pernas na hora e foi ao chão como um saco de batata.  O Jogador, apesar de já ter sacado o revolver com uma das mãos, ignorando o seu próprio rifle, levou dois tiros no peito. Daí a mão pesou, atirando para o chão. Apesar dos ferimentos vertendo sangue abundante da caixa torácica, ele ainda se aguentou por um tempo, oscilando sob os pés como se fosse um bêbado a sangrar pelo nariz.
  Clay, nesse milésimo de segundo, levantou o rifle, porém não conseguiu, assim como o companheiro, evitar dois tiros no peito que também minaram a força dos seus braços e fizeram-no recuar três passos. Largou o rifle na hora. O novo xerife estava com os olhos esbugalhados, incrédulo. O ar de troça abandonara-lhe a fisionomia.  Os dois baleados, ainda de pé, desmoronaram ao mesmo tempo. O Jogador, a oscilar como um pêndulo, caiu de costas, de cara virada para o céu cinza. Clay desabou sobre os joelhos, depois tentou buscar uma golfada de ar, mas só fez vomitar sangue pela boca. Assim como o reverendo, ele tombou à frente de cara na neve também.
  Os cidadãos de Bodie Hills começaram a correr para todos os lados à procura de abrigo. Por instinto, o marshal se jogou no chão enlameado pela neve para evitar o tiro da carabina de Big Jim. O gigante, no entanto, ao mirar o forasteiro foi impedido por Charles, que se jogou de ombro contra ele. O impacto empurrou o grandão para fora do estrado do palanque e, desequilibrado, antes de cair, apertou o gatilho. O tiro acertou na cabeça de uma mulher no meio da rua tentando fugir da confusão. O caos se instalou na cidade!
  Big Jim, enlameado, recuperou-se da queda com incrível agilidade para o seu tamanho. Levantou-se já de revolver em punho atirando. Angus ergueu-se sobre um dos joelhos no chão nevado, enfiou uma das armas de volta no coldre, ajeitou os óculos desarrumado na ponta do nariz, fechou um dos olhos, segurou o colt com ambas as mãos e atirou uma única vez. A cabeça do gigante foi lançada para trás primeiro, espirrando sangue, depois o corpo tremeu por menos de um segundo para logo desabar também.
  Enquanto o pânico tomava conta do lugar, em meio a correria das pessoas para fugir das balas perdidas, Angus caminhou com passadas rápidas até o palanque. No caminho deu mais um cuspida de tabaco mascado no corpo do reverendo e apontou a arma para Charles.
  — Rápido, pegue o cavalo do xerife Frank e venha comigo se não quiser levar uma bala na cabeça como os outros.
  O rapaz não disse nada, pulou na rua e saiu correndo para o estábulo da delegacia. Montou em um animal malhado sempre sob a mira do marshal. Em seguida, o oficial tomou as rédeas da montaria do sentenciado, levando-o até o local onde estava o seu próprio cavalo. Os dois saíram da cidade em galope rápido, pois Angus não pretendia, de modo algum, levar um tiro pelas costas.
 
 
  O vento gélido vindo das cordilheiras aumentou perto do meio-dia. Angus, havia quase duas horas, rebocava o cavalo do ex-auxiliar de xerife. Os dois não haviam trocado uma palavra sequer durante a descida pela encosta traiçoeira. A cada 15 minutos, ele olhava para trás a observar com muita atenção a trilha íngreme por onde desciam.
  A cidade de Bodie situava-se lá em cima e, até aquele momento, nenhuma patrulha de moradores revoltados surgiu para reivindicar o prisioneiro, ou tirar satisfações pelo estrago das mortes na comunidade mineira. A única coisa que Angus fez pelo preso foi lhe oferecer um pesado casaco de pele para poder enfrentar o frio das montanhas.
  Depois de se certificar bem que não estavam sendo seguidos, Angus apeou da sua montaria e disse ao prisioneiro:
  — Desça do cavalo.
  O rapaz desceu do animal e ficou de frente para o delegado. Angus olhou o jovem de cima a baixo e, num gesto suave, abraçou-o num aperto fraterno, dando-lhe tapinhas nas costas.
  — Eu sinto muito, Charles. Não consegui chegar a tempo.
  — Eles mataram Frank. Ele era um bom homem – disse o rapaz com a voz embargada, pesada de tristeza.
  Angus, afastou-se um pouco para encarar o jovem, mas sem largar os seus ombros.
  — Eu sempre avisei aos dois para tomarem cuidado. Ele foi esperto em refazer uma vida nova por aqui e você não tinha nada de vir procurá-lo.
  — Eu o amava, você sabe. Obrigado por ter, mais uma vez, arriscado a vida para me salvar. Como você conseguiu botar a minha cara no cartaz do Billy the Kid? E este distintivo, onde conseguiu?
  — Isso agora não importa. Charlie Gray Doonley, você sabe que eu não aprovo a vida que leva, mas não poderia suportar ver a nossa mãe lamentar a morte do filho preferido dela. Vamos embora depressa! A caminhada vai ser bem longa.
  Os dois montaram nos cavalos e tomaram o rumo para casa debaixo daquele mundo branco de neve. Ao longe, se alguém por ali estivesse de passagem, ainda poderia ouvir Angus tentando animar o irmão:
  — Um dia, Charles, tenho certeza, você será uma pessoa feliz!
 




 
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 29/11/2020
Reeditado em 02/12/2020
Código do texto: T7123032
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