Cavaleiro de Atena

Naquele tempo, a iniciação de um cavaleiro incluía uma espécie de jogo. Por isso, tive que enfrentar o ritual de passagem. No começo, tive certeza de que era demais para mim. Posso dizer que eu preferia que tudo isso fosse diferente e bem mais simples. Eu não via chance de encarar tudo aquilo sem muita renúncia e abnegação. Mas era como era, e todos que buscavam se tornar cavaleiros tinham apenas que se adaptar. Quanto a isso, meus mestres magos sempre deixaram bem claro:

- Não vai ser fácil, mas você tem que confiar em si mesmo e treinar muito.

Não ia ser fácil mesmo. O que eu teria que enfrentar na batalha final eram simplesmente dez monstros apavorantes, que eram os principais terrores do mundo ocidental. Treinar era tudo o que eu poderia fazer, e foi o que eu mais fiz, durante dois meses, um ano, três anos!

O treinamento era dureza. Incluía cinco horas diárias de exercícios e orientação dos mestres. Eram repetidas inúmeras orientações e práticas incessantes, para desenvolver golpes especiais que seriam necessários na batalha.

Isso sem falar no desafio que era a maldita ave que atormentava todas as práticas, uma cruza de coruja com harpia, sabe-se lá de qual abismo teria saído. Pairava acima dos meros mortais destinados ao combate, e mirava a todos os pretendentes com a autoridade do desdém, como a nos indicar a certeza da nossa derrota.

Além dessas horas diárias de treino, os mestres magos também recomendavam praticar ainda mais um tanto em casa, para desenvolver um melhor condicionamento. E eu me dedicava, mais cinco, mais seis, mais sete horas por dia. Queria estar em forma, com a força necessária para a luta.

Alguns companheiros buscavam o mesmo objetivo. Treinávamos juntos e servíamos de escudeiros uns para os outros, trocando nobres palavras de incentivo no meio daquela extenuação toda. Mas no fundo sabíamos que nossas batalhas seriam individuais, cada qual tendo que superar os seus próprios limites. Assim, nos dedicávamos como se fosse a coisa mais importante das nossas vidas.

Como todos os outros aspirantes, precisei de coragem e sangue frio, para dominar, nos mínimos detalhes, as técnicas de cada adversário. Eles eram um mais aterrorizante que o outro. Eram capazes de atacar com uma variedade impressionante de golpes diferentes.

Para aprender a aplicar os principais golpes e dominar o uso de magia, praticamos com vários mestres magos, especialistas em cada monstro. Nas horas de concentração, os mestres Alexandre e Carlos, os grandes de seu tempo, em volta da nossa mesa redonda, repetiam pela milésima vez a todos nós iniciantes:

A regra do jogo diz que os aspirantes a cavaleiros só podem utilizar no máximo trinta e cinco golpes contra cada monstro.

Então vocês têm que aplicar muito bem seus golpes, de maneira objetiva.

- É absolutamente necessário fazer render as poucas horas de disputa, para eliminar cada um dos inimigos tão cedo quanto possível.

- O companheiro Amadis sentia que podíamos ter dificuldades e perguntava:

- Mestres, também aprendemos chutes e outros golpes baixos. Podemos usar?

- Não sejam ingênuos! Isso não seria, nem de longe, tão eficiente quanto os golpes oficiais que vocês aprenderam aqui. Deixem para usá-los somente em último caso, quando não houver alternativa.

Outro aspirante, Rolando, sentia esperança com o uso de magia e perguntava:

- Mestres, nós também aprendemos magia. Podemos usar contra nossos inimigos?

- Mesmo que nós mestres tenhamos ensinado a usar magia, ela exige tanto gasto de energia, que só poderá ser utilizada contra apenas um dos monstros. Por isso, ela deve ser reservada para o mais terrível dos seus inimigos.

Para mim, o pior deles sempre foi aquele conhecido como o último do Lazio. Não era flor aquele lá. Mas é claro que todos os outros também eram amedrontadores. Eu tinha que conhecer cada inimigo como a mim mesmo, e isso não estava sendo nada fácil. Muitos detalhes tinham que ser plenamente incorporados, porque, na hora da batalha, eu não teria tempo para pensar. Os inimigos poderiam atacar com qualquer arma de seus vastos arsenais, e eu teria que responder rápido, ou amargar a indignidade de uma derrota.

Passei por diversos testes, constantemente, frequentemente, periodicamente. À medida que ia tendo esses confrontos, comecei a crer que poderia desenvolver mais habilidades contra alguns dos monstros, porém bem menos com outros, o que invocava ainda mais terror. Todos eles tinham que ser derrotados, e bem derrotados, pois estavam ali para me destruir. Se qualquer um deles me derrubasse, eu não poderia prosseguir a formação de cavaleiro, e tudo estaria terminado.

Depois de muitos anos, completei os treinamentos. Os mestres, em seu solene julgamento, decidiram que eu tinha aprendido tudo o que podia. E então chegou o tempo da batalha. Assim como meus irmãos de armas, recorri a uma vela para cada santo. Vesti a armadura azul da sorte. Fui para a arena do confronto portando todas as minhas armas.

Tremi quando cheguei ao local e aquela maldita ave apareceu para perturbar também na batalha decisiva. - Que não me confundisse os movimentos agora! - E então, rangendo os dentes, e tentando controlar meus castigados nervos, aguardei soar o sino para o começo da peleia.

Um pavor alucinante tomou conta de mim quando vi que os monstros me atacariam dois a dois. Os mestres magos tinham avisado, mas na vida real parecia muito pior.

Tive que me valer de todos os treinamentos para enfrentar os dois primeiros. Um usava todas as técnicas de combate que foram devastadoras em inúmeros confrontos ao longo da história. Tinha a aparência de um cavalo híbrido, e no lugar da cabeça tinha apenas fogo. O outro era uma salamandra encantada, que na verdade era uma bruxa que até os padres tinham medo. A detestável usava magias que atordoavam o organismo do vivente, causando náuseas e até desmaios. Não sei se foi a absoluta tensão, sei que estava com todos os sentidos aguçados ao máximo. Agressividade também, talvez em excesso, mas necessário. No fim, consegui acertar todos os golpes nesses dois. Usei sempre minha arma preferida, que eu creio com todas as minhas forças que é mais poderosa que a espada. Depois pensei, sob a aura da ave maligna, que devia ter sido sorte de principiante.

A segunda dupla parecia ainda mais difícil. Mas eu me sentia um tantinho mais confiante pelo resultado com os primeiros. Audácia, quem sabe. Bem ou mal, eu ainda estava de pé e prosseguia na disputa. Mas a ave altiva não me dava fé nenhuma, como em desafio. O monstro quimérico que lançava veneno de uma boca, ácido de outra e enxofre da terceira era o mais perigoso de enfrentar, pois se isso me atingisse, causaria um entorpecimento que poderia durar dias. Já o outro era uma serpente gigante com olhos de fogo e uma língua descomunal que se enrolava para dar seus golpes de chicote. Enfrentei então muito mais dificuldades, errando golpes que me deixaram em situação vulnerável. Mas então, com impetuosa coragem, derrubei esses dois também, embora tenham me deixado com sequelas por vários dos próximos dias.

Ainda sentindo o abatimento, enfrentei a dupla seguinte, que lutava com técnicas de todos os lugares do planeta. Um dos dois era um tatu gigante, um gliptodonte, como diziam os mestres. Ele podia se transformar em uma bola colossal, e simplesmente rolava mui rapidamente com todo o seu peso por cima de quem não saísse de sua rota. O outro era um mago poderoso que manipulava terra e fogo, ondas e movimentos, pesos e luzes, e até choques. Recorrendo aos inestimáveis conselhos dos mestres magos, mais do que com qualquer outra dupla, foi como consegui derrubá-los. Ainda assim, a desprezível ave permanecia voando lá no alto, importunando minhas ações e pensamentos.

Faltavam mais dois desafios. Um dos monstros era a rainha de todas as centáureas. Seu arco preciso e sua aparência me confundiram completamente. Seus golpes exigiam a maior concentração e nenhuma distração, pois ela era inclemente. Eu precisava aplicar um ritmo calculado aos golpes, mas perdi assustadoramente a noção do tempo. Quando me dei conta, o outro monstro, uma bela e ágil sereia, lançava sobre mim uma torrente infindável de sons harmoniosos, encantadores e intrigantes, que me impactavam de maneira a me atordoar. Nem minha espada nem minha arma predileta davam conta do enfrentamento. Dessa vez, tive que recorrer à baixeza de humilhantes chutes e pontapés, talvez por impaciência, mas era uma situação de último caso. Não tendo mais a noção do tempo, estive prestes a encarar a derrota. A ave perturbadora me olhava do alto, sempre firme em sua descrença. Não sei como, no fim, consegui derrubar essas inimigas.

Restava então o temível monstro do Lazio, aquela planta carnívora que espraiava suas folhas-tentáculos por toda a arena. Mas a sua onipresença e as suas sutilezas não me derrotariam. Eu tremia e batia os dentes com o nervosismo do momento. Se eu derrubasse mais esse, chegaria à consagração de cavaleiro. Caso contrário, acabariam todas as minhas chances, e isso seria inadmissível. Tentava sentir confiança ao entrar no local do combate para empreender a façanha naquela última oportunidade. Mas só sentia minha firme teimosia e aquele mau humor que alguns irmãos de armas chamavam temperamento difícil. Não me importava. Iniciei o confronto de modo centrado e objetivo. Cumpria a tarefa de modo mecânico, e só bem depois, em meio ao enlevo proporcionado pela boa luta, foi que percebi que estava conseguindo acertar todos os golpes.

Mas o meu maior medo se materializou quando o perverso inimigo usou seus golpes psicológicos, praticamente me obrigando a uma abordagem mais demorada, elaborada e subjetiva. Esse era sempre meu ponto fraco nos treinos, e agora era miseravelmente exigido na última contenda da batalha. A tênue confiança que eu ensaiei sentir no princípio se desfez, do mesmo modo que um traço a lápis se desfaz com o uso de uma borracha.

Então lembrei de buscar um último recurso. Os conselhos dos mestres magos foram preciosos. Mesmo que fosse esgotar todas as minhas energias restantes, agora eu teria que usar magia, custasse o que custasse. Quando lancei mão da magia, os efeitos foram bem diferentes daqueles dos outros golpes. A magia fluiu, praticamente sozinha, conduzindo minhas mãos para o ataque. Ao mesmo tempo, percebi que sentia um incrível abalo em minha energia: cansaço, fadiga, e, no fim de tudo, um terrível esgotamento. Mal pude acreditar na fraqueza que me abatia. Minha intransigência com todo mundo era ainda mais brutal quando voltada para mim. A mera possibilidade de fracassar me causava profunda revolta, ou talvez pânico. Foi quando pressenti mais uma vez a presença da perversa ave, e isso me trouxe, de alguma forma, um renovado ímpeto, tanto que consegui derrubar o último monstro, e cheguei com vida ao fim do combate.

Alguns de meus companheiros também chegaram ao fim do desafio. Amadis e Rolando conseguiram. Mas Alonso não - dizem até que ficou louco. Como os mestres magos previram, o ritual de passagem foi, de fato, muito difícil.

Tendo passado por essas provas, que me exigiram tanta dedicação, havia ainda aquele inimigo a mais, esse sim, eu não percebia, mas era o maior de todos, que assombrava cada batalha, tentando me impedir, me limitar, me atrapalhar de todo jeito. Mais do que a muito desejada ascensão à nobre vida de real cavaleiro, tive nessas batalhas minha vitória de fato relevante contra a mil vezes maldita síndrome do impostor, aquela ave de mau agouro companheira de toda a minha sina. Depois disso foi que os mestres magos revelaram que ela era, na verdade, a fiel coruja da deusa Atena, me vigiando e apoiando o tempo todo nessa luta. Eu que não tinha percebido.

Posso dizer que até hoje não encontro palavras suficientemente cavalheirescas para descrever o orgulho que passei a sentir, por então poder ostentar o mais belo brasão do mundo, quando vi meu nome no listão.