PUXIRUM NA CASA DE FARINHA
Era uma manhã de segunda feira,
o sol ainda não havia se manifestado com rigor, mas o dia começou agitado no sítio dos luzardos, bem mais agitado que os dias anteriores.
Ainda na rede, fui acordado com um grande alvoroço do lado de fora, eu não era acostumado com a vida no sítio, mas sempre que acabavam as aulas, lá estava eu metido em um mundo que não me pertencia.
Eu até gostava da vida no sítio, mas tinha certas coisas que não batia. Por isso as vezes eu ficava ali no meu mundinho sem querer ser importunado por ninguém. Mas era inevital ficar por muito tempo na rede enclausurado, pois ouvia todo o rebuliço la fora. E isso era suficiente para que eu fosse impulsionado a levantar e assistir do telão retangular do vão da sala o que se passava.
"Coloca essa saca pra cá".
"Vai ajudar teu pai com a Lenha"
"Jemima já voltou com as vazilhas"?
Olha esse fogo pra não apagar".
Tia madalena bem sabia o trabalho que era cuidar dos filhos e ainda liderar o puxirum.
As sacas de mandiocas trazidas de carroça no sabado a tarde lá de baixo, já tinham sido descarregadas e estavam empilhadas na casa de farinha a espera dos empenhados trabalhadores para o término de um ciclo que duraria mais três dias.
Era difícil de acreditar que de um cubículo de pouco mais de 50 metros quadrados saia tanta gente para a descasca da mandioca, vinha gente também da vizinhança, família de seu Osvaldo, dona Quitéria e os filhos, dona josefina, família do seu valdivino. O poxirum foi acertado dias antes, cada um sabia a função que deveria desempenhar, mas era preciso o comando firme da minha tia madalena, se não fosse ela as coisas não andava. Eu ainda de rosto amassado debruçei-o sobre os braços na janela e passei a acompanhar a movimentação do recinto, Tia madalena quase sempre inaugurava os trabalhos, cortou a boca do saco com um toco de faca arranjado, a lamina cega mais espichava a envira de castanheira do que mesmo cortava.
— Val, vira esse saco aqui pra mim.
Tio Valdecir atendeu o imperativo da irmã com uma pergunta...
— Vai dá pra descascar tudo hoje?
— Tem que dá, amanha agente tem que torrar pelo menos uns 3 sacos.
logo em seguida vieram os outros caboclos com seus apetrechos, virando saco e arrumando cada um, um cantinho para sentar. Em pouco tempo a roda estava tomada de gente e mandioca espalhada por todo lado.
começaram definitivamente as atividades na casa de farinha.
— Seu Osvaldo, a vaca não apareceu mesmo?
— Até agora nada, madá
Tô até pensando em não vir amanhã, vou ter que procurar.
Outro dia sumiu um boi do dagoberto.
– Éh, ainda tem onça lá pra trás,
— Não é não, madá, é gente mesmo.
Enquanto isso pelas costas ouviu- se o estalar do fecho de Lenha espocar se no chão.
— Madeira, gritou tio manduca, assustando os mais desavisados,
— vai assustar o cão, corno velho. Retrucou tia madá.
— É a onça. Rebateu tio manduca,
Uma salva de gargalhada e gritos despertou os demais.
com o estardalhaço feito, uma só onça não daria conta de tanto barulho, a menos que fosse uma alcateia das mais ferozes, não sobraria ninguém.
os trabalhos avançavam com as raízes despeladas e raspadas, e
nada dos garotos voltarem da beirada.
— Manduca, o pessoal tão precisando da'gua para lavar as coisas aqui e esses meninos que não voltam.
— Não posso nem vê isso, madá, ainda tem muita Lenha pra rachar.
— Por que então tu não levou contigo o beto?
Rumm! Só se for pra eu ter raiva
— Ah, mas comigo ele não se cria mesmo
Tia madalena espichou o pescoço, não viu nem um menor que podesse mandar, me encontrou espichado na varanda, fixou os olhos e com ternura me pediu um favor.
— Oh, Maurício, tu não quer ir lá na beira pra mim, chamar os meninos?
— Eu tia?
— É, meu filho
Eu até não queria ir, mas o que eu podia dizer naquela hora de tamanha súplica. Nem bem desci a escada da varanda, começou a boiar no barranco a cima. dois, três, cinco,
Formou-se uma fila de meninos molhados com as latas cheias d'água no obro pingando água pelas vielas internas do recinto,
— Eu já ia lá buscar vocês
Tia, madá não deixou passar.
Esse buscar vocês nao tinha a mesma ternura como minha tia se dirigia a mim.
Zezinho como sempre foi o derradeiro a chegar, então os irmãos mais velhos o acusaram de fazer cerrão.
— Culpa do zezinho. Sentenciou Alberto
— Eu mermo não
Tentou se defender mais estava em minoria.
— Era bem eu mesmo
— É sim mãe, ele afundou a canoa do seu Oswaldo. E a gente teve que desalagar. Reforcou alberto
— Tudo eu, tudo eu.
Despejaram parte da agua no barril de peneu, e outra parte d'água pipocava no chão
quando parecia o fim da contagem da prole, chegaram mais uns, era a família do seu diquinho irmão do tio manduca.
— Bençã tio, bença vô,
— Deus te abençoe, Deus te faça feliz.
Porque no interior é assim quem não é parente é cunhado. eram tanto bagulho que eles traziam que pareciam que estavam de mudança.
Isso tudo me lembrava a prossissao de Santo Antônio quando os devotos esauridos costumavam passar em frente de minha casa com a penitência nas costas.
Mas era no igarapé que se formava a rama de meninos, a água que de coloração límpida, qualhava de tanto espisotearem. De igaual modo, no paço da casa de farinha apontavam para mais de cinco casais e mais algumas mães solteiras, cada uma acumulava de três a 9 nove filhos, bezalina era excessao, tinha onze.
Aproveitou-se a chegada da água
Para lavar os apetrechos da produção.
— Quem chegar por último é a mulher do padre. Gritou Bento.
— Zezinho vai ser mulher do padre
Respondeu diquinho em quanto saia em disparada com os demais.
Zezinho nem bem tinha baixado a lata vazia no chão quando ouviu a mãe...
— Zezim, nao vai mais não, lava logo esse caititu.
A vontade de meu primo era disputar corrida em disparada com os demais até o rio. A essas horas eu já estava com pena de meu primo. É que ninguém merece ser a mulher do padre, o dito parecia sem importância. Mas os menores levavam a sério. Os maiorzinhos não perdoavam.
— Zezinho vai ser a mulher do padre
— Zezinho vai ser a mulher do padre.
O coro deixava Zezinho louco de raiva. Mas ele não podia fazer nada, a obediência a tia Madá o fazia parar por um instante e cumprir a tarefa confiada.
Afinal, não custava nada tirar o excesso de sujo da frestas do rolo e voltar rio adentro.
Apanhou uma cuia lameada de poeira, bateu emborcada no canto da gamela, mergulhou no barril da'gua e sapecou com todo vigor no caititu, ouviu se o berro de tia madá.
— Filho de uma figa, tá molhando pra cá.
— Foi sem querer mãe
— Sem querer uma ova, tamanho o menino e não presta atenção. Deixa isso aí e vai chamar teus irmãos. Tia Madá quando queria, sabia prender os meninos. Nunca soltava a linha toda. soltava aos poucos. Quando eles pensavam que estavam livres ela os trazia para perto dela.
Triste, Zezino respondeu..
— Tá bom. Mas depois eu vou pular na'gua.
— Nada disso, tem muita coisa para fazer.
Zezinho atirou mais umas três cuias d'água no motor e saiu de mansinho quando ouviu..
— Vê se não vai demorar, se não eu vou lá e trago todo mundo no cipó.
Mesmo a conversa não sendo comigo,
Eu sentia uma certa angústia no peito, via os filhos de dona Zezé, sem o aperreio da mãe, via norato e caninana soltos no mundo, Mas os filhos de minha tia, tinham tratamento diferenciados, eram criados com rédeas curtas. eu tinha 12 anos de idade e ja tinha uma vontade enorme de mudar o mundo, queria intervir na tentativa de abolir meu primo dos punhos firmes de minha tia.
Mas os termos acordados com minha mãe me faziam retornar.
Digo isso porque sou testemunha de quando vi uma certa vez tia Madá pedi para que eles em fila passassem por ela enquanto o coro comia com um galho de jurema. O motivo Se deu por conta de uma cabra, mas isso já se deu a muito tempo, desculpe-me, leitor não contarei detalhes, polparei meus primos desse vechame.
Nesse revezamento de recreio e trabalho doméstico, eu me via desajeitado, eu não estava sob o jugo das obrigações, porém me sentia desconfortavel em não contribuir, aos poucos e mesmo de forma tímida e amadora eu me juntava a eles, tinha horas que o tempo parava para nós, até iamos fazer as tarefas delegadas de buscar agua na beira, de buscar a mistura da mandioca no leito do rio, de assistir a ordenha das cabras, de alimentar as aves. Mas muitas vezes esqueciamos de voltar. Por conta disso as penalidades eram rotineiras, a exceção era eu, hóspede.
Eu só não entendia a excitação daqueles pequenos por nadar no rio logo nas primeiras horas do dia. E se a mãe não os chamasse com firmeza, eles passavam o dia todo de molho, não se cansavam.
Zezinho nem bem chegou a margem do rio e logo
foi recepcionado pelos irmãos com o cântico:
— Chegou a mulher do padre, chegou mulher do padre.
A raiva que já havia passado voltou em um instante.
" vou me vingar"
— A mamãe tá precisando da gente zezinho?
—Tá não! Falta só as gamelas. Mas eu já tô lavando
Sério?
— É sério, eu vim só pegar água Para terminar, já, já volto para cá.
Os irmãos mesmo desconfiados permaneceram no rio sem que as horas os incomodasse.
Zenzinho subiu, esperou a intervenção da mãe...
— Cadê teus irmãos?
— Eles disseram que não vão vir agora, não
É mesmo é. Pera lá
Passou a mão no facão. Cortou um galho de goiabeira, raspou as folhas e desceu. Diquinho quando deu com ela já era tarde demais,
— Passa de um por um.
— Zezinho falou que não tinha mais nada para fazer.
A lambada chiou algumas vezes nos membros inferiores de cada um deles.
— Eu dis-se que não é-ra pa-ra de-mo-rar! Alberto saltitava mais que piaba fora d'água.
Tia mada tinha uma técnica de disciplinar os guris. Batia por silaba.
Diquinho ensaiou correr...
— Não corre se não é pior
— A culpa é do zezinho
— Ah e é. Destá que ele me paga também. Manteve o sipó na mão e com o mesmo ímpeto disciplinar
Voltou a casa de farinha, viu Zezinho empenhado nas gamelas sem que ninguém tivesse mando ele lavá-las.
Minha tia desfez o planejado, mas antes de descartar o sipó pronunciou diante dos presentes um duro sermão nos filhos que retornavam choramigosos.
Eu que estava encostado em uma das gamelas, ouvi a confidência de Zezinho
— Ufa! Dessa eu escapei,
— Zezinho, deixa eu te ajudar com isso. Enquanto eu jogava água, ele passava uma bucha sem sabão no interior dos caixotes.
Depois do ocorrido. Até os acomodados no recinto procurou o que fazer, de sorte que até a hora do almoço não se ouviu nenhuma piada e nem mesmo se viu uma alma penada bestano na casa de farinha.