O último espécime

Muuelai era atormentada por inseguranças. Ser diferente dos outros golfinhos lhe causava angústias constantes. Mesmo que suas companheiras nunca a tenham discriminado e conseguisse nadar e prender a respiração tão habilmente quanto as outras, sabia que não era normal ser do jeito que era.

 

Devido ao seu corpo estranho, suspeitava que olhavam torto para si quando estava de costas. Essa suspeita virava praticamente certeza quando se tratava dos machos, porque raramente conseguia acasalar enquanto o resto do grupo tinha relações com certa frequência. Além disso, não podia simplesmente fingir que a aparência não importava e era um golfinho como qualquer outro. Não, a biologia fazia questão de lembrar que não pertencia àquele grupo. Jamais conseguiu engravidar, enquanto Tuulandi já tinha três filhos.

 

As duas eram as mais velhas do grupo de fêmeas com as quais viviam, tinham em torno de 19 primaveras. Eram idosas, chegando perto do fim da vida. E isso atormentava Muuelai. Não admitia morrer sem ter sido mãe, sem ter a prova de que pertencia à classe dos golfinhos! Estava desesperada, mas não importava quantas vezes cruzava, continuava sem engravidar. Foi uma tristeza compartilhada com a outra, que pareceu rir do seu sofrimento.

 

– Ah, Muuelai! Por que não me disse isso antes? – Ela sorria. – Eu achava que você ficava com os machos porque gostava, não porque queria engravidar. É claro que não conseguirá conceber com um golfinho, olha para você!

 

Escutar isso foi a confirmação de que ninguém ali a considerava parte do grupo. Tentou segurar as lágrimas, mas foi em vão.

 

– Calma, calma! – Tuulandi tentava desesperadamente reverter os efeitos de suas palavras venenosas. – Soube que você não era um golfinho quando fui pescar com os animais terrestres. Eles eram muito parecidos com você, porém tinham as barbatanas caudais divididas em duas.

 

Muuelai ficou extremamente curiosa e animada com a possibilidade de encontrar seres como ela. Seres nos quais se reconheceria. Logo, energeticamente, pediu para que explicasse mais sobre os terrestres.

 

– Ia pescar com eles de vez em quando. Era legal, então os visitei frequentemente. Consegui até aprender a língua deles! – Exibiu-se. – É incrível o quanto vocês são iguais! Talvez consiga engravidar com tais bichos. Até porque me parece que vivem 80 primaveras! – falava surpresa com a expectativa alta de vida desses seres. – Sendo assim, você não está prestes a morrer, é jovem ainda. Só é estranho eles serem terrestres e você, aquática.

 

E assim mais uma das dúvidas existenciais de Muuelai foi despertada: como eram seus pais? Ela não sabia. Os golfinhos contaram que a resgataram ainda bebê de uma área onde um líquido preto dominava a pura água marinha e deduziram que sua mãe tinha morrido pelo contato com aquele escuro tóxico. Não se lembrava de ter visto outro ser parecido consigo, por isso ficou imediatamente com vontade de conhecer esses espécimes terrestres.

 

Insistiu que Tuulandi ensinasse a língua e mostrasse o caminho o quanto antes. Não tanto por sua ansiedade, mas pelo fato de que, se ainda era jovem, a outra já não o era.

 

Quando saltou no barco do ser terrestre e o encarou, soube que estava diante de alguém mais compatível e seus olhos ficaram radiantes imediatamente. Seu coração ficou acelerado e, ainda em negação, pegou a mão dele para verificar se era mesmo feita de carne. Já o pescador, ficou apavorado ao encontrá-la. O primeiro ato foi cobrir sua nudez e levá-la para casa antes que mais alguém a visse. Já assistira a filmes o suficiente para saber das coisas horríveis que poderiam fazer com ela.

 

Desse modo, Muuelai descobriu o que verdadeiramente era: uma sereia. Apenas metade como os terrestres, infelizmente. Mas jurou para si mesma que encontraria outro igual a ela em sua totalidade. Viver no seco foi uma experiência no mínimo estranha, e a adaptação foi pior ainda. Eles faziam tudo num sistema de trocas envolvendo moedas, e ela não tinha nada disso. Sem ajuda, não sobreviveria no local.

 

A locomoção era bem mais difícil, afinal não podia andar como os outros. Usava uma cadeira de rodas que Tuulandi encontrara abandonada no fundo do oceano, e mover-se nela às vezes era um desafio. Entretanto, nada a faria desistir de viver ao lado daqueles que refletiam sua imagem.

 

Sentia-se imensamente grata por ter sido recebida por um macho chamado Inácio. Não só pela generosidade em ensiná-la mais sobre o mundo dele e de pagar seus custos iniciais, mas também por mostrar que era possível se transformar. Deixar de ser aquilo que nasceu para se tornar no que realmente era. Ele era prova viva da viabilidade de tal metamorfose, pois tinha feito a mesma coisa. Contudo, em vez de trocar o habitat, havia trocado o gênero. Contou que nascera Inácia.

 

Saber dessa história deixou Muuelai bastante confiante de que sua adaptação era possível. Até porque seria apenas temporária, Inácio a ajudaria a procurar mais sereias e enfim viveria junto de seus plenamente iguais. Os terrestres tinham catalogado diversas informações sobre seres como ela – algumas ridículas, como a do canto assassino – e a esperança de encontrar algo útil era grande.

 

Todavia, apenas Muuelai estava esperançosa, pois Inácio não sabia como realizar a vontade da sereia. Não é como se outras pessoas encontrassem esse tipo de animal todo dia. E, se a vontade dela era engravidar para ratificar estar entre semelhantes, ficar permanentemente entre humanos não resolveria a situação. Afinal, as diferenças anatômicas entre as espécies eram muitas. Ademais, havia a possibilidade de divergirem no número de cromossomos.

 

– Eu sei que Deus abençoou os animais desejando que fossem férteis e que, segundo a ciência, um maior sucesso evolutivo de um indivíduo pode ser medido pelo número de descendentes. – Inácio falava temeroso de magoá-la ainda mais. – Porém, isso tudo é para colocar minhoca na nossa cabeça. Ninguém é obrigado a ter filhos.

 

Ao ver a expressão confusa de Muuelai, percebeu que ela não havia sido contaminada por tais ideias ridículas. Tentar explicá-las, portanto, atrapalharia mais do que ajudaria. Melhor seria contar sobre uma teoria anti natalidade.

 

– Você conhece a teoria de Malthus? – perguntou com um sorriso amarelo.

 

Obviamente, mencionar as correntes malthusianas pouco surtiu efeito, pois elas já foram provadas como incorretas. Ter uma grande população, por si só, não fazia um país ser pobre ou ter escassez de recursos, muito pelo contrário. E mencionar a versão eco dessa corrente também não funcionou. Não eram os golfinhos e sereias com seus três filhos per capita que poluíam o mar com líquidos pretos e cadeira de rodas, eram?

 

Portanto, Inácio se viu obrigado a continuar essa busca certamente infrutífera ao lado de Muuelai por dois anos inteiros. Foi só então que ela começou a desanimar e a ver todas as lendas de sereias como realmente eram: mitos. Mas se seres metade gente e metade peixe não existiam, como ela estava ali? Mesmo assim, era evidente o quanto seu grupo parecia não estar em lugar algum. Era um pária, independentemente de qualquer lógica.

 

A voz de Inácio comentando ter achado mais material recente de um pesquisador do folclore sobre a construção do mito das sereias em diferentes culturas quebrou o mar de depressão em que Muuelai estava se afundando. Praticamente não havia informações novas naquele monte de texto, com exceção de um relato que reacendeu a esperança da sereia de uma vez por todas.

 

Um animal parecido com uma sereia tinha sido filmado ano passado num lugar a 800 km dali, o vídeo estava nítido e ninguém foi capaz de provar a edição. Por mais que não tenham levado a sério aquela história, – nem mesmo o autor da gravação acreditou ter captado uma sereia – o escritor da pesquisa achou interessante adicionar o relato. Era uma prova de que essas criaturas seguiam vivas no imaginário e rotina do mundo até aqueles dias.

 

Considerando que a última pessoa a ver sereias foi Cristóvão Colombo, Muuelai achou muito animador conseguir essa nova pista. Desse modo, Inácio não teve escolha além de levá-la até lá.

 

Obviamente, não encontraram nada ao chegar e a cidade pareceu perfeitamente igual àquela com que ela estava acostumada. Enquanto isso foi uma decepção para Inácio, sua acompanhante não pareceu nem um pouco abalada. Assim que teve o primeiro contato com a praia daquela região, deu um último sorriso para o terrestre e submergiu com sua cadeira de rodas.

 

Ele ficou ainda um mês naquele lugar esperando seu retorno, porém os dois nunca mais se viram. O homem ficou desesperado com o sumiço dela, ainda mais porque aconteceu depois de um ato louco de se jogar na água sem olhar para trás. Chegou a pensar que tinha se afogado, mas sendo um ser naturalmente aquático, era pouco provável. Inácio preferia pensar que ela estava lá no fundo do mar junto de seus amigos sereias e, com um pouco de sorte, um parceiro que lhe desse filhos. Infelizmente, jamais seria capaz de confirmar essa versão.