A Efígie de Alegra

Vindo do Bosque das Bátegas, tronco de cedro no ombro, Gael Cambará chega a seu furtivo chalé, põe o inseparável chapéu marrom de feltro no cabideiro e vai ao ateliê saudar as enfezadas carrancas [suas únicas companhias]: Olá Caguira? Bom dia Nefando? Dormiu bem Magarefe? [sua peça preferida]. Gael ansiava por um amor, mas não era sociável, ia ao vilarejo apenas para comprar suprimentos e vender suas obras...

Mais um rosto começa a tomar forma através das hábeis mãos de Cambará, ele logo nota que este difere dos demais que já esculpira, traços belos e suaves. Os primeiros contornos lembram a fisionomia da dama que o visita em sonhos nas suas noites solitárias, mas que ele sempre esquece ao acordar. Gael concentra-se e continua, empolgado, tal um garimpeiro que acha o vestígio de um raro diamante na jazida e cava, cava, cava... Para o quanto antes extrair sua graça. Um incomum sorriso surge nos lábios de Cambará quando ele finaliza a obra, após horas ininterruptas de trabalho.

Gael põe a carranca na mesinha de cabeceira e admira-a até pegar no sono. Pela manhã, um raio de sol invade o quarto por uma fresta na janela e incide sobre o verniz fresco que reveste a estátua. Ao acordar, Gael vê aquela face resplandecente: “Parece uma santa!” balbucia ele. Tal um idólatra que se prostra ante um totem Gael aproxima-se lentamente como se temesse ser rejeitado e beija aqueles lábios estáticos.

As ternas manifestações para com o ser inanimado tornam-se rotineiras, Cambará apaixona-se, passa a dividir a cama com a carranca, e batiza-a de Alegra. Gael, no entanto, queria ser correspondido, mas como? Ele então se lembra dum certo encantador que vive no meio do Bosque das Bátegas, chamado Lucien, e vai até ele.

Com Alegra no ombro, Gael caminha horas a fio até o local. Chegando lá, Lucien diz obter o conhecimento para dar vida à estátua, porem adverte que jamais fez esse tipo de encanto: “Tal sortilégio pode trazer consigo consequências que eu desconheço!” completa o mago. Sem levar isto em consideração, Gael quer seguir adiante, e atendendo a demanda do bruxo, verte três gotas de seu sangue sobre a efígie de Alegra e retira-se, sem ela.

De volta ao chalé Gael Cambará vê alguém na cozinha e pensa se tratar dum salteador, esconde-se atrás dum arbusto, mas ao sentir cheiro de ensopado e ouvir um canto feminino, toma coragem e aproxima-se. É Alegra, isso, Alegra, em carne e osso, que ao vê-lo pula em seus braços e beija-o afetuosamente. Na sala de jantar mesa posta, no quarto, cama feita... Agora, toda a manhã antes de ir ao bosque, Gael Cambará deixa um ramalhete de calêndulas amarelas na mesa de centro para Alegra.

Certa manhã Gael Cambará acorda, Alegra não está ao lado, vai à cozinha e ao banheiro, e nada dela. Chegando ao ateliê dá falta de seu acervo de carrancas [com as quais a muito não dirigia uma palavra] Sai às pressas do chalé, e presencia suas esculturas [todas vivas] levando Alegra amarrada a cipós. Antes que pudesse reagir Gael é atingido na cabeça por Magarefe [sua obra, outrora preferida] e cai desacordado no alpendre.

Ao recobrar a consciência ele segue o rastro das estátuas bosque adentro, e chega a um armazém abandonado. Na porta, Magarefe, Nefando, Caguira e outras dezenas de carrancas: Foi só criares Alegra para te esqueceres de nós, não é mesmo Gael? Esbraveja Magarefe. No entanto, acabaremos com a raça dessa maldita ao anoitecer, completa.

Gael Cambará desesperado vai novamente à Lucien: O encanto deu errado, por favor, ajude-me a salvar Alegra! Suplica-o. O vidente então o manda banhar-se com roupa e tudo [mas sem o chapéu] na Fonte Mágica das Mutumbas. Chegando lá, aflito e confuso, ele inverte a ordem e molha somente chapéu.

Nesse ínterim, por um descuido das carrancas, Alegra consegue libertar-se do sótão onde estava, mas antes de fugir apanha dois galões de gasolina que estão na área externa do armazém a fim de incendiá-lo com elas dentro. Sem desconfiar que Gael acabara de entrar para salvá-la, ateia fogo em tudo. Ao afastar-se, Alegra ouve Gael chamando seu nome em meio às chamas, mas ela nada pode fazer. Quando o fogo acaba ela volta ao que sobrou do armazém abandonado, e além de cinzas vê o chapéu marrom de feltro de Gael, intacto.

Inconsolável, Alegra volta ao chalé, põe o chapéu de Cambará sobre a mesa de centro e vai à cozinha beber um copo d’água com açúcar, ao voltar em lugar do chapéu há um ramalhete de calêndulas amarelas.