3. A Ilha

Stella abriu seus olhos lentamente. Era uma manhã tranquila. Da janela de seu quarto, avistava a mata virgem que beirava o ribeirão, caudaloso e de uma água escura que aparentava ser extraída das profundezas do solo daquela terra fértil.

Os pássaros pipilavam alegremente e Stella se sentia serena e com suas energias renovadas. Era uma manhã tranquila e havia tarefas a serem feitas.

Ao se levantar da cama, ela sentiu seu corpo meio adormecido, mas prosseguiu espartanamente com a árdua tarefa que se impunha diariamente: existir com dignidade. Ao se olhar no espelho, notou que a idade se escancarava em sua face, mas porque se preocupar, pensou, a manhã merecia sua devoção total e ela não poderia permitir a intromissão de sentimentos negativos na sacralidade daquele amanhecer.

Rumo à cozinha, Stella desceu dois lances de escada que ligavam seu quarto, situado no segundo andar, o único cômodo dessa repartição, ao primeiro andar, onde ficavam a cozinha e uma pequena salinha, bastante modesta.

Logo pensou no aroma do café que estava porvir e que dependia exclusivamente da maestria de suas mãos, tanto na plantação, quanto na extração – Stella mantinha uma pequena roça de vários víveres; feijão, mandioca, café, verduras diversas; e um pomar de onde retirava as mais deliciosas frutas; maças, pêras; mangas e amoras.

Pegou o vasilhame e saiu pela porta da cozinha. Avistava dali, da varanda, toda a extensão do ribeirão, cercado por uma mata virgem baixa e modesta, e um pequeno caminho que terminava na beira d’água. Seguiu por ele.

O orvalho cobria todo o gramado que cercava sua humilde casinha. Com apenas uns 40 passos, Stella já sentia o ar frígido provindo do ribeirão e a bela canção que ele entoava no correr de sua alma: a melodia da água acalmava seu coração.

Encheu o utensílio e retornou à casa, passando primeiro por um pequeno casebre onde ficavam suas ferramentas de trabalho e a lenha colhida no dia anterior: logo notou que havia esquecido de colher. Como acenderia seu fogão? Mãos à obra.

Manuseando com destreza sua machadinha, Stella minou lenha. Em seus pensamentos, tudo era como algodão: não havia necessidade de conversar, pois morava sozinha, e sua paz era somente dela mesma: mas que outra paz há que não a sua própria?

Com um golpe alcançou o núcleo de um tronco grosso, perfeito para a combustão, mas um som a fez recuar: havia um ninho no topo daquele tronco e seu proprietário surgiu energúmeno a escandalizar, como se quisesse dizer: quem maldições você pensa que é para tirar de mim minha casa?

Stella respeitou a existência daquele pequeno ser: sempre o fazia – que direito tinha ela de restringir a existência de outros? Subitamente, porém, um tom negro de discórdia, ânsia de poder, bateu a sua porta e fez estremecer sua paz. Todos os pássaros se calaram e o som do ribeirão cessou.

Enquanto o céu escurecia, inadvertidamente, Stella recebeu uma visita. Avistou-a ao longe, sentada em um balanço pendurado numa pequena árvore que avizinhava sua casa... Mais uma vez, a visita havia retornado. Ele, na verdade. Sem nome, se referia a ele como “o inconveniente”.

Sua chegada era sempre precedida de uma sensação de nó na garganta e de uma ansiedade única. Enquanto Stella encarava aquele tronco, semipartido, sentia uma pressão que a impelia a derrubar de vez o ninho: o que a impedia? Por que ela respeitava? Num golpe, jogou-o ao chão, espantando o ser que ainda protestava em pios estridentes. Três ovinhos se espatifaram no solo – três atos de violência contidos num só ato de ódio.

Era ódio o que ela sentia, sempre que aquele ser a visitava.

Largou a machadinha ali mesmo, entorpecida de arrependimento e confusão, e foi em direção àquele ente. Ao se aproximar dele, pode escutar o silêncio ensurdecedor que o circundava: todas as melodias cessavam e davam lugar a um nada, mas um nada pesado, sufocante.

- Você de novo. O que queres além de minha paz? Quer minha alma? – perguntou

- Sua alma passou a ser minha no momento em que você se entregou ao ato.

- E será sua para todo sempre?

- Será minha enquanto não for sua.

- E como pode ser minha?

- Quando você assim quiser.

- Parece simples demais. Qual o truque?

- Simples? Então o faça. Tome sua paz de volta e terá sua alma.

Notou, de repente, que aquele ser, de existência duvidosa, havia desaparecido.

O primeiro raio de Sol retornou, mas trépido. O som do ribeirão retornou, mas ruidoso. O dia amanheceu novamente, mas a paz... Essa estava ausente. Stella a havia perdido, novamente. Os ventos ventavam ávidos deitando as árvores e esvoaçando os cabelos de Stella.

O quanto a paz de outrem é a nossa paz? Se era individual, porque parecia se estender além de si? A questão era, pensou, que sempre que perdia a sua paz, inexoravelmente perturbava a dos outros – e esse ato reverberava por toda a ilha.

Stella morava em uma ilha, sozinha. Uma ilhota de pouco mais de 1 quilômetro quadrado, no meio de uma imensidão de água. Era esse seu mundo – que agora estava sob a égide de outro ser, usurpador de sua serenidade, de sua paz. O que faria? Nesse momento, só pensava em seu café. Então vamos ao café.