O Inverno

E houve o inverno! O melhor dos matadores subjugou a bravura em mim. Os tambores rufaram pelo triunfo das dores. Vi-me no abismo dos sentimentos e a dor humana é a mais profunda.

Os valores a que faço apologia foram refutados. Refutei à mim. Aquele que, em demasia, tutela por si torna-se enfermo pelo pecado do excesso.

Fui o melhor matador. Matei um homem e trouxe o inverno. Esplêndida era minha frieza, minhas mãos frias apertaram firme as mãos do inverno.

Envolvido em um frio abraço, conscientizei-me: “Meu humilde leito amornava-me mais do que um leito belíssimo. Sou zeloso em minha pobreza e no inverno é quando minha miséria me é mais fiel”.

Rezo para que me encontrem ainda frio. Não havia calor no que fiz. Havia misericórdia. Havia ternura. Não rolaram lágrimas, nem arrependimento. O mundo é um inverno só.

Não haverá julgamento. Como hão de julgar um morto? Como hão de condenar o réu de si próprio? Creio que sempre conseguirão julgar, ou apelarão para a maior justiça. A justiça divina. Ah! Sim. O que os homens são incapazes de julgar apelam para seus fantasmas.

Condenem-me homens! Homens incapazes de humanizar sua espécie decadente. Homens incapazes da humildade. Homens incapazes de evoluir, pois já chegaram no seu máximo. A besta.

Vivi na grande cidade. Ressecaram-me os bons sentimentos. Era predominante o aroma dos matadouros. Penduravam as virtudes como se fossem animais à espera da degolação.

Homens de maior primazia acolhiam-se, do inverno, em bebidas quentes. Homens de menor primazia acolhiam-se no labor e eram coordenados aos gritos: “Labutem vermes miseráveis, labutem até adoecerem, labutem enquanto curro suas filhas”.

Asco era o que restava. Eu sirvo, tu serves, nós servimos. Asco da ambição. Eu sirvo, tu serves, nós servimos. Asco da exploração. Eu sirvo, tu serves, nós servimos. Asco da putrefata riqueza de sangue.

Cansei-me de dar sangue por moedas. Prefiro dar sangue por paz. Previno-vos, das grandes cidades, como não preveni a mim mesmo.

Da cidade das almas observo a cidade dos homens. Linda é minha cidade, nela me apraz os sentimentos antes expropriados, nela não há sangue de barganha. Inóspita é a cidade dos homens. Cidade das bestas.

E para os homens que virão: “ou aguardem a ruína duradoura da labuta, ou ceifem-se por melhor primazia.” Não submetam-se a fidalguia.