A Barca

Como tens regado o jardim do matrimônio? Por que rezas? É uma vergonha para ti rezar. Pergunto-me, por que há um desejo de dominação nos homens? Todos os que por aqui passam revelam tais desejos e outros mais.

Como andas o “amor ao próximo”? É com esse dizer que há grandes dissimulações, falácias das mais sujas. Se não amas aqueles que são mais difíceis suportar, então não amas ao próximo. Ora, por que mentes, então?

Logo no berço já são concedidos fardos, virtudes fatigantes sobre o bem e o mal. Constrói-se, então, o legado do homem, em que se mascara o mal de bem. Foste criado em tal legado do bem?

Por que fizestes votos ao matrimônio? Por que enlaçou a si com um nó tão lânguido e doente? Houve pressa. Há de ser transmitido o legado dos homens. Não se tarda em propagar a espécie mais mentirosa.

A pressa, porém, fez-se atar o mais fraco dos laços. Logo segue-se sua ruptura. O adultério.

- Já falaste o suficiente. – interrompeu o penado – Demoniza-me em demasia. Sou um homem bom, nunca deixei de cumprir minhas orações e meus deveres.

- Orações e deveres de um homem bom de nada têm valor. Quebraste as tabuas em que acreditas, homem bom! Queres o paraíso vendido por um tal espirito a que chama santo?

- De nada sabes sobre meu santo espirito. – a cólera tomou o penado.

- Ah, sim! Conheço teu espírito. Semeou e regou sementes e delas nasceu a pior das árvores, a Cruz.

- Tu és o demônio vestido em farrapos. Delicia-se em um festim de dores e a minha dor é só mais uma para te saciar.

- Há um demônio sim, porém estas dentro de ti. De mãos juntas e de joelhos orando e dizendo à ti: “Há um Deus”.

- ­­Vejo em ti o olhar de condenação. Frio é o teu olhar. Deseja meu sangue e meu corpo.

- Teu sangue já foi desejado por sua cônjuge e teu corpo por sua amásia. O teu prazer pelo coito adúltero foi o mesmo da lâmina que o extirpou.

- O pecado de minha cônjuge meretriz será pago com o divino. Execro cada beijo dado de bom grado na boca de minha facínora. – enoja-se o penado.

- Ora, foste tua venenosa saliva e teus olhares de revés que fizeram nascer o ódio dela por ti.

- Não me fascinas, demônio dos farrapos. Defendes uma assassina, pois pactua dos pecados mais hostis.

- Pactuo com a verdade. E em verdade digo à ti: “Quebras-te os laços matrimoniais, porém, há muito, esses já haviam o quebrado.”

- Reconheço meu pecado. O pecado da carne. Não nego o prazer de ter me deitado com a amásia que me amou de verdade.

- A amásia que o “amou de verdade” passou, há pouco, por mim. Vítima da mesma lâmina. Disse-me ter amado mais homens do que cobras trocam de pele.

- Amaldiçoo essas vis mulheres. Venosas são. Perigosas são.

- Sim, “homem bom”. Aproveite e amaldiçoe a si próprio. Suba, temos um longo caminho.

Mais um a bordo. Canso-me do trabalho, mas não das boas histórias, das boas mentiras contadas, da boa inocência do homem. – A propósito, homem bom - “Trouxe moedas para esse velho barqueiro?”