O mistério do morro do galo dourado

Dizem as más línguas que certo morro localizado ao sul da ilha de São Francisco é detentor de um tesouro vivo. Um galo dourado. Dizem também que quem tiver posse desse galo dourado ganhará acesso a um grande tesouro. Mas a dificuldade de se obter esse galo era notória, pois até agora ninguém o havia pegado, elevando o animal a um status de lenda, um animal lendário.

O morro, chamado de Canta Galo, possuía algumas particularidades, diziam que quem subia o morro não conseguia permanecer por muito tempo lá, havia certos barulhos estranhos que perturbavam e afugentavam os visitantes, havia luzes estranhas que cegavam e amedrontavam da mesma forma que os barulhos.

Eu mesmo tive a oportunidade de visitar esse morro e lhes passo aqui a minha experiência. Não sei ao certo se o morro o qual visitei é de fato o do Canta Galo, mas os eventos foram semelhantes àqueles descritos pelos nativos da ilha.

Em meados de maio, soube dessa história por um estranho que conheci num bar, pareceu entusiasmado em contar sobre o morro, mencionou, inclusive, pessoas conhecidas que haviam estado no local. Já em agosto tive a oportunidade de voltar a São Francisco e muito me empolguei por experimentar a vivência do morro do Canta Galo. Retornei ao bar que havia estado meses atrás, na esperança de encontrar aquele estranho que me contou a história. Sem sucesso. Senti certo receio de questionar aos demais presentes, e cheguei a pensar que havia sido vítima de uma lenda apenas.

Na terceira noite adentrei no bar e o encontrei. O estranho tão rapidamente me reconheceu e me convidou para partilhar de uma bebida. A conversa seguiu o mesmo ritmo da última vez que o havia encontrado, mas dessa vez perguntei seu nome, ele disse que se chamava Eugênio, era dono de uma pequena padaria, nada demais admitiu. Disse que poderia me levar até o morro, mas que não entendia a minha curiosidade, contudo, respeitava. Combinamos que eu o encontraria em seu estabelecimento pela manhã do dia seguinte e assim o fiz. Partimos cedo, a caminhada era longa e cansativa, havia algumas trilhas. Após cerca de uns trinta minutos de caminhada pela pequena estrada de chão chegamos ao pé do morro, confesso que a euforia tomara conta de mim. Eugênio me auxiliou na subida e chegamos a um local pouco aberto, com espaços entre as árvores, onde montei minha barraca. De fato era uma área singular, o morro não era coberto de vegetação rasteira, e havia árvores por todos os lados, altas e imponentes, a luz do sol pouco penetrava o ambiente.

Não havia nada de muito especial no tal morro, além do fato de ser um tanto escuro. Eugênio me assegurou que ninguém iria me importunar, pois somente eu era louco o suficiente para acampar num lugar como aquele. Ele forneceu mais algumas informações sobre o lugar dizendo que seu pai quando novo visitava o morro com certa frequência na companhia de dois primos e que certa vez foram expulsos a pedradas por uma sombra misteriosa próxima ao rochedo principal no alto do morro.

Eugênio permaneceu por mais alguns minutos e disse que tinha que voltar a suas atividades, ele estendeu a mão num caloroso aperto e vi em seus olhos que me desejava sorte. Afinal, o que tanto esses nativos temem? Pensei. Logo descobriria, provavelmente.

Acampar sozinho não é tão ruim assim, você pode ser testar de uma forma positiva, além de poder desfrutar com muita atenção aos detalhes da natureza. Preparei uma pequena fogueira com os utensílios que havia levado e me ocupei com a leitura de 20.000 léguas submarinas, de longe a aventura mais ousada que meus olhos puderam ver e minha imaginação construir. O dia ia embora tão rápido quanto chegou e na penumbra do fim de tarde resolvi começar a investigação, na verdade me senti um completo inútil, pois deveria ter feito isso horas atrás, mas o livro e o ambiente confortável aprisionaram minha atenção de tal forma que não pude resistir.

No topo do morro havia um rochedo, duas enormes pedras parcialmente cobertas de limo se encontravam numa junção quase que perfeita da natureza, acredito que era desse rochedo que os avistamentos do galo dourado se davam, procurei estudar da forma mais minuciosa possível, mas nada pude constatar além de que aquilo não passava de rocha pura sem qualquer característica notória.

A noite avançava com certa velocidade e me forçou a voltar à minha barraca, preparei novamente a fogueira e esquentei uns pães dados por Eugênio. A minha noite seria longa, não poderia deixar me abater pelo sono, mas não resisti ao livro e me debrucei sobre ele no chão da barraca. Permaneci imóvel lendo aquelas aventuras e me imaginando nelas, sem me dar conta de que estava eu vivendo uma tão singular quanto àquela descrita no livro. Resolvi sair um pouco e esticar as pernas. A floresta do morro era extremamente densa e escura, conseguia ver apenas algumas árvores à frente da fogueira e nada mais, foi quando algo me chamou a atenção, um estranho vulto correu a alguns metros da fogueira, não pude identificar formas nem nada, mas escutei os passos apressados pisoteando a terra. Aquilo de fato me assustou, mas não me veio à cabeça nada de sobrenatural, pelo contrário, logo imaginei que seria assaltante, ou até mesmo assassino. Pobre diabo, caso viesse a me assaltar, o que levaria?

Senti um calafrio que me estremeceu e aos poucos a paranoia se instalou no meu ser. De alguma forma meus ouvidos foram afetados por um poder sobrenatural e se tornaram aguçados, pude notar os sons do silêncio noturno e percebia o movimento da coisa que me rodeava. Deixei a postos uma tocha e entrei discretamente na barraca onde acendi um lampião e tentei retornar a minha leitura.

Olhei no relógio de bolso e marcava apenas onze horas da noite, imaginei que talvez Eugênio não fosse tão amigo assim e preparara uma armadilha para mim, na qual eu caí como um pássaro tolo. Tentei me entreter com o livro, mas as palavras embaraçadas na minha mente se confundiam com o papel e fui tragado pelo sono. Não sei por quanto tempo permaneci desacordado, mas levantei-me com um profundo aperto no peito, embora eu seja um homem grande e forte, jamais pensei em ter essas sensações que julgava covarde, finalmente o medo me invadiu. Em meu suplício me atentei para a parede da barraca feita de lona e nas chamas dançantes da fogueira e o vi, a sombra se aproximou demasiado de minha barraca e suas mãos acariciaram a superfície da mesma com delicadeza, eram mãos grandes de dedos desajeitados, a criatura rondou a barraca por algum tempo, sem emitir som algum, apenas caminhando pesado, como se fizesse esforço para levantar as pernas, depois de algum tempo o ser sumiu, não consegui mais ver sua sombra nem escutar seus passos. Nesse momento achei o facão que trouxera comigo, que no momento do medo não lembrei que possuía. Enchi-me de coragem e saí da barraca, armado com a lâmina, mas para meu alívio realmente não havia nada, estava completamente só no morro. Quando olhei no relógio, ele havia parado, pois marcava onze horas ainda.

Aos poucos o medo foi dando lugar à razão e já que não podia ver as horas, tentei verificar se havia estrelas no céu que pudessem me dizer algo. Sim, quando se é marinheiro as estrelas podem lhe dizer muito, mesmo em terra o céu nos reserva uma fonte inesgotável de informações. Em meu intuito eu fui infeliz, não havia possibilidade de se ver nenhum pedaço do céu, as árvores simplesmente tampavam tudo. Comecei, então, a refletir sobre questões existenciais e o modo de vida trivial das pessoas, eu me forcei a uma situação que me amedrontou o que provavelmente me fez ver as coisas de um ângulo diferente, mas e as pessoas que não vivenciam situações assim? Que apenas encaram a vida em um modo de operar automático sem qualquer preocupação substancial para a vida, agem como formigas num formigueiro sem rainha. Essas pessoas são felizes em suas concepções? Acredito que eu seja narcisista demais para entender um operário do capitalismo, talvez seja por isso que prefiro encarar esse tipo de situação em minhas horas livres.

A atenção a meus pensamentos foi logo dissipada pelo som que vinha das trevas, um assovio baixo e longo que se estendia por cerca de um minuto. Tentei reconhecer a espécie de animal que produzia esse som, e minha infantilidade foi posta à prova. Isso só poderia ser obra de algum zombeteiro que se deleitava com meu medo, ou até mesmo um grupo de desocupados. Sem pestanejar saquei meu facão e uma tocha e parti ao encontro dos malditos. O som parecia vir do alto do morro, logo imaginei que estivessem próximos do rochedo e nessa direção eu caminhei, contudo eu caminhei muito, e aquilo demandava um força enorme, parecia que caminhava a horas sem nem ao menos o cenário mudar, cansado, sentei-me encostado em um pinheiro para recuperar o fôlego, foi quando o assovio se intensificou e foi seguido de um estranho barulho de corte de árvore, o machado parecia penetrar no tronco com tanto afinco que para tamanha força imaginei que somente um homem forte pudera produzir, não dei muita atenção, pois imaginei que fossem os zombeteiros tentando me intimidar de alguma maneira, mas as machadadas se intensificavam à medida que eu tentava ignorá-las, pela tempo calculei que pelo menos algumas árvores já tivessem sido derrubadas. Levantei e tentei seguir em direção ao topo, mas o cansaço tomara conta de mim, demandando muito esforço subi a passos penosos.

Conforme subia, as machadadas pareciam se distanciar até que em dado momento cessaram por completo. Ali no silêncio total vi uns vultos correrem pela minha direita e isso, novamente, me amedrontou, eles passaram rapidamente sem fazer barulho algum, pude contar apenas três. Ainda a passos penosos subi mais um pouco até o ponto que vi uma grande luz que passava sobre o morro e iluminou toda a floresta, por alguns segundos fui obrigado a cerrar meus olhos até que o clarão se foi por completo, o que era aquilo eu não faço a mínima ideia.

Pude notar os rochedos logo à frente, cerca de uns 10 metros morro acima. Não havia ninguém lá, ou pelo menos estavam escondidos do outro lado. Nesse momento comecei a escutar sons de coisas caindo, sons de coisas batendo nos troncos, foi quando uma dessas coisas caiu próxima de mim, eram pedras, largas e chatas, e estavam quentes, eram arremessadas de trás do rochedo e então eu tive a certeza que havia alguém ali, subi como pude desviando dos arremessos, mas sucumbi quando fui acertado na cabeça por uma dessas. Caí sem poder lutar e em meu delírio desmaiei. Fui momentaneamente acordado pela forte luz que outrora passou pelo morro e ao abrir meus olhos eu vi, de forma embaçada e de um ângulo desfavorável, pois estava caído com a cabeça encostada de lado na terra, um galo pequenino, mas totalmente dourado, ele estava em pé numa abertura entre as rochas, ele cantou três vezes e desapareceu. Na escuridão tentei erguer minha cabeça, mas uma forte náusea tomou conta de mim e caí desacordado novamente.

Lembro-me de ter sido acordado por Eugênio quando já era dia, o homem batia em meu rosto para que eu voltasse à realidade e quando recuperei-me ele me ajudou a voltar ao acampamento que estava intacto, com todas as minhas coisas. Contei a ele sobre minha noite e pedi que me desse sua palavra se esteve ou não no morro tentando de alguma forma me assustar. Pude notar que ele percebera meu desespero e em sua sabedoria me disse:

- Eu o avisei para não vir a este lugar, todos nós sabemos que não se deve vir aqui, jamais alguém ousaria lhe perturbar, mesmo porque não contei a ninguém de sua vinda.

Foi então que eu segui meu caminho e Eugênio o dele, o agradeci e ele riu ao ver a marca da pedrada que levei, disse, em minha partida, que essa marca ia servir para nunca esquecer do morro.

Parti para o centro daquela cidade e tomei uma embarcação que me levaria até o navio que estava ancorado na mar. Durante o caminho, observando aquela singular ocupação humana na costa da ilha, percebi que somos realmente muito retrógrados em nossa caminhada, que há mais coisas nesse mundo do que imaginamos.

O que eram aquelas coisas as quais eu passei, não sei dizer, poderia ser alguém querendo me assustar ou espíritos brincando comigo, mas em todo caso a atmosfera que o morro proporciona é esmagadora, o turbilhão de sensações, tais como o medo, o vazio, a raiva, a angústia e a impotência fazem parte de nossas vidas, temos que viver com esses sentimentos. Não aconselho a ninguém a ir lá, mas se um dia o fizer que faça com respeito, pois se não acreditar ou subestimar as forças daquele lugar, tal como eu fiz, você será engolido por elas e tenha certeza que elas anseiam por isso.