O Barão da noite - Capítulo.1

No fatídico dia, José da Silva, como de costume, adentrava a bohemia paulista na madrugada fria e sedutora, enquanto a cidade dormia. Como tantos “Zé’s” era mais um cidadão brasileiro, que na labuta diária trabalhava o dia inteiro para a noite se encantar. No auge de seus trinta e cinco anos, sua virilidade juvenil permitia que demorasse horas nas noites até que o sol beijasse o horizonte e resplandecesse na alvorada. Casado mas sem filhos, tinha o relacionamento que queria, ou seja, não tinha. Cumpria sua obrigação social sustentando as contas da casa, e sua esposada não trabalhava, retrógrado, pois era um absurdo um homem ser incapaz de fornecer a subexistência de seu lar. Mas a Rua dos Lírios, 88, esquina com a Av. Itália, não era mais seu lar. Morava nas ilusões de uma vida bohêmia. Um homem esguio, de aspecto respeitoso, que gostava de trajar-se com elegância, e todas as noites colocava o seu terno de linho branco muito bem passado, feito por um alfaiate reconhecido da alta costura paulista, finos fios cinzas cortavam a extensão da indumentária refinada, no bolso à altura do peito sobre o coração, um lenço de seda pura rubro, dobrado com atenção e cuidado pelo proprietário. Deitado sobre o tórax uma gravata comprida escarlate resguardada dentro do terno, consolidando o visual hébrio. Nos pés, como um cristal espelhado negro, sapatos italianos muito bem polidos, herança de seu avô Giancarlo, imigrante italiano que fugirá ao Brasil da Grande Guerra. José para cobrir-se da garoa característica da metrópole, usava um chapéu panamá branco, com uma fita divisória de cor de vinho entre a aba e o topo. Sempre ajeitando-o na cabeça, era a sua marca característica, daí um de seus inúmeros apelidos “O Homem do chapéu”. Tinha sempre no bolso direito da calça um maço de cigarro amassado, com a figura de um camelo debochado, fumava sempre, com uma forte tragada bastava um movimento respiratório que metade do cigarro era queimado enquanto a brasa na ponta se acendia com intensidade. No bolso inverso, um isqueiro prateado, riscado pelas moedas que ficavam no mesmo depósito de pano, o qual deixava sempre a parte interna da calça com uma fuligem preta, assim como seus dedos que rodeavam o mecanismo para acender a chama. Já no bolso de baixo de seu paletó, havia um lenço, não decorativo, também avermelhado, mas este não por pigmento têxtil, mas pela hemoglobina que saia de suas vias respiratórias, a cada tosse leváva-o à boca, era a tuberculose, que não era motivo para o tirar de sua vída ativa noturna, todavia incomodáva-lhe, devido a sudorese que a febre causava e a vertigem ao levantar-se das mesas. Gostava de saborear em goles suaves um copo de whisky com um cinzero ao lado, e aos leves toques do dedo indicador deprezava as cinzas no recipiente de vidro. Passava horas rodeado de companheiros de noitada, colegas de prosas, conhecidos de causos e mulheres amantes. Mas dentre todas as amantes que seus olhos já registraram apenas uma era dona de seu olhar, a noite. Observava cada detalhe de sua musa, o brilho pálido das estrelas piscantes do céu, o reflexo no asfalto do brilho da luz do luar, o perfume sedutor do orvalho sobre a copa das árvores da praça central, o silêncio visceral dos becos e vielas, a sinfonia dos morcegos produzindo seus gritos melódicos próximos aos telhados das casas de planta baixa, o tambolirar da chuva efêmera nos postes nas vias públicas, o eco de alguma ambulância solitaria ao resgate em um cotidiano qualquer, o grunido das correntes tocando os cadeados das portas e janelas de uma cidade violenta, um gato sem teto derrubando uma garrafa no canto de um quintal e a maresia alcólica inebreante beijando seu rosto na volta pra vida comum. Há anos que o homem do chapéu trocara o seu gosto pelas moças dos cabarés e as viuvas dos balcões dos botecos, pela chona. Algo de peculiar lhe chamava na obscuridade do anoitecer, então declarou o seu amor àquela que não pode ser vista nem tocada.

Lá pelas duas horas da manhã, em um boteco qualquer, sentado em uma mesa de fino alumínio levemente amassada em suas laterais, no canto da parede, José tomava um copo de sua bebida preferida enquanto saboreava o seu fumo, em suas costas a parede descascada em tom de azul amarelado, e pendurado atrás de sua cabeça um quadro de natureza morta de autoria desconhecida de uma fruteira com pêssegos, bananas e laranjas, desbotados pelo tempo e empueirados por desleixo. Entre ruídos de risadas escandalosas e copos e garrafas se tocando, uma música tocava de um aparelho no fundo do local quebrando o ritmo do ambiente, em má qualidade de som e com pequenas travadas, “End of the Night” trazia certa paz ao recinto perturbado.

Ele observa a tudo, o lustre velho e quebradiço no teto com duas lâmpadas funcionando de três, um casal começando a desfirirem tapas e cuspes entre eles, um taco solto no chão úmido de álcool recente e vômito de alguns dias atrás. Mas a sua atenção real estava para a janela, observando o céu encoberto por nuvens carregadas escondendo o luar, sentia o sussurro do vento úmido refrescando o seu rosto, uma chuva forte estava a caminho, após dar um generoso gole e limpar o resíduo da boca, com um pequeno e enigmático sorriso, deixou escapar entre uma pequena linha de seus lábios:

- Bela noite.

Após uma hora de contemplação, o copo estava vazio, e a garrafa também. Aproximou-se da mesa um garçom, com mangas arregaçadas, uma pequena gravata borboleta mal posicionada no pescoço, na cintura um pano velho acinzentado com manchas de restos de petiscos do mês inteiro, com um bigode volumoso e uma caneta atrás da orelha.

- Mais uma rodada? - Perguntou o garçom.

José balançou a cabeça negativamente, e o funcionário do local removeu a garrafa e o copo seco.

O relógio sobre o balcão de bebidas mostrava três horas da manhã, Zé pegou o seu chapéu cuidadosamente sobre a mesa, não era respeitoso um cavalheiro consumir e vestir seu adorno em um ambiente fechado, deu alguns tapas na aba para remover a poeira que caíra sobre seu companheiro de vestimenta, e colocou na cabeça ajeitando-o com sua peculiaridade comum. Empurrou a cadeira para trás com um impulso de corpo e arriscou levantar. Em vão. Sentiu a vertigem característica de sua enfermidade, sentou-se abruptamente, e como um gatilho desenfreado de sintomas começou a tossir agressivamente. Buscou desesperadamente no bolso de seu paletó o lenço, enquanto com uma mão segurava a boca, pela pressa demorou alguns segundos até seus dedos acharem o pedaço de pano, levou-o a boca com rapidez, e passou os próximos vinte segundos a tossir abafado pelo amigo inseparável. Espontâneamente, do mesmo modo que a crise embarassosa começou, ela cessou. Nas mãos o sangue exaurido pelos pulmões, no rosto a indiferença de quem já havia deslumbrado esta cena dezenas de vezes.

Limpas as mãos, guardado o lenço, levantou-se com agilidade, esperando vencer a sensação de tountura. Conseguiu. Repirou fundo, tirou o pigarro da garganta e o engoliu, sentindo o sabor de metal enjoativo. O suor corria pela testa até as bochechas, e em movimentos simples e lentos ajeitava o seu paletó e inspecionava a presença de quaisquer gotas hemorrágicas. Tirou do bolso sua carteira dedilhando o dinheiro em espécie que tinha, pegou duas notas de valor considerável e bateu-as sobre a mesa. Virou de costas guardando seus pertences na calça e caminhou lentamente em direção a porta enquanto fitava o chão para evitar qualquer tropeço ou passo em falso referente à vertigem que sentíra à pouco.

Chegando à saída desceu o pequeno degrau que separava o bar da calçada, acendeu mais um cigarro, tampando com a mão esquerda a fronte para evitar que o vento apagasse a chama. Guardou o isqueiro e tragou profundamente a nicotina para dentro de seus alvéolos enfraquecidos. Colocou as mãos nos bolsos da calça, enquanto segurava o cigarro entre os dentes balançando-o de cima para baixo. Olhando para a via pública, observou apenas alguns poucos carros passando rapidamente, nenhuma viva alma caminhava por ali. Terminou de fumar, e arremesou longe a bituca com ponta dos dedos. Corrigiu o alinhamento do chapéu em sua cabeça e olhando para o céu com um semblante vítreo murmurou:

- Você está realmente bela hoje.

E seguiu caminhando pela calçada calmamente.