DENTRO DE e DOS NÓS

Existem sentimentos arrebatadores. A tristeza, por exemplo. Ela vem como uma onda, te alaga, te infesta. O quarto estava assim, arrebatado por uma sensação frívola, por aquela angústia e ansiedade que só o triste sente. Eu estava deitada e ele ao meu lado. Eu sabia que algo estava errado, mas não conseguia ao certo explicar o que era. Sua expressão era irreconhecível, mas ao mesmo tempo eu conseguia distingui-la como uma manifestação de um eu-interior que o amor que eu sentia por ele me permitia compreender. Algumas vezes, ele sentia certos calafrios e eu mesma me assustava e um frio em meus órgãos percorria.

— Sinto que devo ser exorcizado. Há algo comigo. — A quebra do silêncio me deixara pasma. Sua voz, realmente, parecia-me tão diabólica quanto seu olhar tão pavoroso e no fundo amedrontado. Eu não ousaria expressar qualquer frase, não ousaria professar uma resposta, pois já estava com medo. Realmente havia uma presença, algo sobrenatural e inexplicável ao tato, aos cinco sentidos. E eu, que nem era sensitiva, sabia que algo estava anormal.

— Me exorcize! — Ele berrou. Estremeci. — Me exorcize agora, eu te imploro — As lágrimas desciam de seu rosto de uma maneira que a dó e a compaixão, em mim, choravam. Eu não sabia o que fazer, nunca em minha vida havia presenciado cenas tais que não fossem minhas, que não fossem minhas dores. Eu sentia tanto medo. Mas se eu dali saísse, ele seria completamente invadido por aquele espírito que sofria. O que dizer? Talvez se eu rezasse..., mas tampouco eu sabia rezar. Um pedaço de um salmo bíblico, talvez. Mas por ironia eu apenas conseguia refletir, eu queria entender qual era a dimensão psicológica que ali havia, se havia.

Ele me olhou, seus olhos estavam inchados e encharcados, que dor. Ele se retorcia, e começava a falar coisas sem nexo. As mãos se fechavam. Meu amor por ele sempre foi uma entrega e ao pensar nisso comecei a desejar estar em seu lugar. Eu estava perplexa, totalmente num estado de paralisia e profunda reflexão, eu absorvi aquela cena e comecei então a chorar, e compreender o quanto o amava. Sua dor, era minha dor. E se assim fosse, onde estaria a minha dor física? Eu sentia dor em meu peito, mas não em meus braços como ele. Eu sentia meus pensamentos estupidamente sãos, enquanto ele estava dominado pela loucura e sofrimento. Há dias estava assim, distante. E eu me calei, nada fiz. Quanta injustiça, saber que o outro sente uma tristeza profunda, quase traumática e por puro egoísmo de quem ama, não fazer nada e somente desejar que aquilo passe para que a fase inicial retorne. Não retornará, amor é sofrimento.

E de repente, o devaneio havia me dominado de tal forma, que, num estalo, percebi que meu corpo se contorcia e eu não tinha mais controle de meus movimentos. Eu babava, uma gosma suja, eu tentava de todas as formas gritar e pedir socorro, mas percebi que eu apenas existia no meu inconsciente naquele momento. Nada mais funcionava, apenas uma pequena parcela de minha mente que possuía um grão de noção da cena ocorrida. Ele, por sua vez, me assistia. Já estava bem. O que ele carregava estava comigo. Comigo. Por piedade carreguei sua dor, sua bagagem podre que antes estava intrínseca a sua mente tão vazia, que já beirava a insanidade. Eu podia entender o que ele havia passado agora, consegui tirar de seu corpo e de sua alma situações que não foram fruto de um relacionamento, mas de um passado imenso.

Ouvi sua reza e tudo foi se desligando, eu sentia que ali eu poderia morrer, sentia meus membros iam ficando tão leves a ponto de flutuar e eu estava me desprendendo do meio material. Vi então seus olhos tão piedosos quanto os meus quando eu o havia visto naquela situação. Ele também me amava na mesma intensidade. E então percebi que o que eu achava que eram salmos, reza pronta eram seus versos de amor que nenhuma força podia combater. Vi uma sombra negra saindo de meu corpo, e indo até ele. A sombra que ia se materializando não conseguia adentrar seu corpo. Tudo estava bem. Ele sorria e quando virou de costas, percebi que algo estava preso em seus ombros como um pequeno animal, ou uma pequena criança. Com a voz cansada, rouca pós-exorcismo, eu disse:

— Há algo preso em seus ombros, segurando seus braços. — Ele se virou. E então me deparei com dois rostos semelhantes, o dele e o de uma criança. Era ele mesmo, numa idade mais anterior àquela. Pasma novamente, mas agora não com medo, recebi uma resposta serena e dois sorrisos.

— Sempre carregarei em meus ombros, mas seu amor puro fez com que não mais carregasse dentro de mim.

Nanda Martinez
Enviado por Nanda Martinez em 13/02/2018
Código do texto: T6253118
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