A porta negra

Ainda é difícil falar sobre as noites em que me perdi, sobre memórias que nunca acessei. De todas as andanças e conversas mirabolantes com seres imaginários, ou reais, nenhuma sensação foi tão nítida quando a daquela noite de inverno.

Devo começar pelo começo, obviamente, assim poderão entender a minha jornada.

Não sou o mais virtuoso dos filhos do Senhor, mas confesso que tenho sim muitos pontos positivos, principalmente a sagacidade, sem a qual não estaria nem aqui para escrever estas palavras.

Hoje não moro mais nas ruas graças a uma família generosa que me tirou do chão lamacento que estava acostumado a me arrastar, devo muito a eles. Com um emprego de avaliador de imóveis pude desfrutar da companhia de muitos homens de bem. O homem que me empregou, o senhor Bernard, era um aristocrata crente em convicções fracas, mas muito me ensinou sobre o labor do profissionalismo e me fez ler muitos livros.

Lembro-me que todas as tardes, próximo das dezesseis horas, ele me convidava para tomar café em sua sala, me contava sobre as maravilhas do mundo e conversávamos animadamente sobre o futuro dos negócios, era um homem espetacular.

No entanto, o senhor Bernard era solitário, nunca tratou das questões do coração, nem nunca comentou nada sobre. O ar imponente, mas sereno, deu lugar a um corpo frio e rígido na noite em que partiu. O médico que veio verificar o cadáver disse não saber a causa, pois Bernard era forte e saudável, muito embora já fosse de idade avançada.

Nos dias seguintes, muita cobiça caiu sobre meus ombros, a nobre família que anteriormente me ajudara agora virara as costas para mim, não sei se esperavam que os agraciasse com algum valor ou algo assim, pois era do conhecimento de todos na pequena cidade que eu me tornara herdeiro de todo o empreendimento construído por Bernard.

Naturalmente que eu fiquei perplexo com a notícia sobre um testamento, não imaginei o apreço deste homem por minha pessoa, sempre me guiei em seus passos e mesmo me sentindo suficientemente maduro para tocar os negócios à frente, ainda sinto que me faltava a sua supervisão.

De fato, apenas tocar o empreendimento de avaliação de imóveis era promissor, estava indo bem, fui, no entanto, obrigado a contratar mais um funcionário, pois sozinho não poderia atender a uma demanda tão grande e exigente!

Havia somente uma coisa que me entristecia! Muitas pessoas vinham à minha porta pedir esmolas, o que me aborrecia mais e mais, afinal de contas não é porque eu fui um morador de rua antigamente que eu tenha hoje condições para ajudar a todos! Pobres coitados!

Aos poucos fui sendo taxado como mesquinho, entre outros adjetivos pouco ortodoxos. Tudo isso me derrubava aos poucos até que dentro de alguns meses eu estava doente.

A bebida me encontrou e eu a abracei como uma velha amiga, o calor que as doses de uísque me proporcionavam nos invernos era mágico e eu logo saía atrás de mais. Visitava botequins e lugares nada familiares, lugares que eu raramente lembrava do que ocorria, muitas vezes voltava com algum hematoma ou com as roupas sujas, rasgadas, num estado deplorável de apresentação. Minha sorte é que os negócios prosperavam milagrosamente, assim podia alimentar meu vício.

Era uma forma concreta de esquecer todo o meu passado e minhas angústias, a decepção com aqueles que um dia me ajudaram e hoje nem me olham nos olhos, a solidão de um homem de trinta e oito anos, sem parentes, amigos, esposa ou filhos.

Em uma noite dessas sei que fui rejeitado por uma mulher da vida, o que me deixou extremamente furioso por não poder conter meus ímpetos mais vorazes. Aquela que se declarou para mim não passava de uma miragem criada pela mente maquiavélica de uma prostituta sedenta pelas cédulas em meu bolso. Naquela noite eu não as dei a ela e resolvi voltar para casa, sabe-se lá como.

Morava logo acima do pequeno escritório, num casario nobre, porém carcomido, resolvi que não era hora de dormir e sentei-me à mesa para tomar um café com o senhor Bernard.

Na tolice de um bêbado, na ingenuidade da solidão, eu vociferei com o nada e joguei a cadeira em uma das paredes. A reação furiosa me nocauteou e eu adormeci ali mesmo no tapete empoeirado da antiga sala de Bernard.

Acordei zonzo, ainda sentindo o álcool no meu sangue e olhei para o estrago que fiz sem razão aparente. No chão havia os pedaços da cadeira e na parede o papel que a cobria estava rasgado, revelando algo que eu jamais imaginaria que estivesse ali: uma porta.

Tratei de retirar todo o papel de parede que envolvia a porta para que esta se revelasse por completo, era uma porta negra, de madeira antiga e textura lisa, parecia grossa e era maciça, deslizei a mão sobre a madeira e cheguei à maçaneta tão podre e enferrujada como uma âncora esquecida no mar, havia um buraco para uma chave grande, certamente só poderia haver uma cópia desta. A porta estava trancada e eu realmente não imaginaria o que poderia haver atrás dela e por que estava sendo escondida.

Dei uma volta pela propriedade a fim de averiguar onde havia de dar essa porta e de fato na parede oposta à porta não há nada, provavelmente essa porta leva a uma saleta ou armário, não faria qualquer grande descoberta, presumi.

Tentei arrobá-la e até a acertei com uma machadinha que encontrei dias atrás em um armário, mas nada surtiu efeito naquela porta negra.

A sala de Bernard não era acessível a ninguém além de mim, ali que se encontravam todos os pertences do homem, entre livros e roupas velhas guardadas em caixotes. Lá também estava a porta negra, a qual não tive sucesso em abrir. É claro que isso não chamou mais minha atenção.

Fiquei muito obcecado pelo trabalho e por alguns dias não liguei para o que pudesse haver porta adentro. Mas isso logo mudou certa noite.

Como de costume havia bebido demais, mas estava mentalmente cansado para sair em mais uma noitada, então fui dormir. Costumo fechar todas as portas e janelas para dormir, não vejo sentido em dormir com a porta do quarto aberta, nessa noite não foi diferente.

Lá pelas tantas da madrugada escuto passos muito distantes, estava em uma fase de transição de acordado para dormindo, algo assim, quando os sons desses passos se tornaram mais nítidos. Despertei por completo quase que imediatamente quando escutei não só os passos, mas o som de uma porta rangendo. Certamente alguém adentrou a casa!

Acendi todas as luzes que pude e ao sair do quarto fazendo movimentos bruscos assustei a coisa e tudo ficou silencioso. Desci as escadas e fitei o velho relógio na parede que marcava 03h57min da manhã, um horário propício a aparições. Não tive receio, me armei com o revolver que guardo em cima do guarda-roupa e vasculhei a casa, para a minha surpresa todas as janelas e demais portas estavam trancadas, menos uma.

A sala de Bernard estava trancada, mas a porta negra estava entreaberta. E eu lá estava de frente àquele portal, mas sem a coragem necessária para transpor. Minha hesitação era compreensível, afinal de contas ninguém tem acesso à sala de Bernard a não ser eu, além disso, dias atrás tentei arrombar essa porta e não consegui, como poderia estar aberta? Seriam esses passos do próprio falecido?

Preferi tomar uma dose antes de abri-la e assim o fiz. Puxei a velha maçaneta e num movimento só ela abriu por completo revelando seu interior que não era nada mais nada menos que um armário velho com umas prateleiras empoeiradas, contudo, uma dessas prateleiras não estava vazia.

Havia no centro da prateleira um vaso de cerâmica. Era um vaso de barro, pequeno, no entanto, o que me chamou a atenção foram alguns detalhes que lembram muito artes indígenas, dentro do vaso havia um líquido muito malcheiroso, imaginei até que fosse algum rato podre que morreu ali, tratei de tentar limpá-lo na pia da cozinha e o que escorreu de dentro do objeto foi uma gosma preta.

Não era um rato morto, nem nada que eu pudesse decifrar, preferi me livrar daquilo e limpar o vaso. Coloquei-o em cima da mesa da cozinha até achar um local mais apropriado para um objeto tão singular.

Levei o tal vaso para o escritório e o coloquei em cima de um armário, meu funcionário não fez qualquer menção ao objeto, acredito que ele nem sequer notou, o que é bom, assim prova que está entretido com o trabalho.

Quanto ao armário da porta negra? Coloquei muitas coisas lá, coisas que não usaria mais, mas que estava guardando por algum motivo. Nas noites seguintes fui acordado pelos sons dos passos e pelo barulho nas portas, aprendi que nada poderia ficar dentro daquele armário a não ser aquele vaso que sempre encontrava um jeito de voltar pra lá.

Não sei se era um espírito ou qualquer coisa do gênero, mas o vaso tinha o seu lugar dentro do armário e sempre que eu o tirava ele voltava e sempre que eu guardava algo naquele cômodo as coisas eram jogadas para fora.

Comecei a ficar assustado, mas em minhas noites de bebedeira perdia a noção dos meus atos e sempre desafiava o armário. Certa vez peguei o vaso e levei para meu quarto, acredito que isso tenha irritado a coisa. Confesso que não vi nada e quando acordei o vaso estava dentro do armário como todas as noites.

Mais doses de uísque e minha coragem se multiplicava a ponto de dormir dentro do armário, meu objetivo era simples: ser arremessado como um objeto qualquer pela coisa que residia no cômodo.

Falhei em meu objetivo, por volta das duas da manhã fui acordado por um toque em meu ombro, era uma figura humana, de porte médio, deveria ter o meu tamanho mais ou menos. Me senti sóbrio, mas de uma forma estranha, havia um gosto estranho de metal em minha boca, meus olhos estavam levemente atordoados pela coisa que irradiava uma luz opaca.

A figura se movimentou pela saleta e me convidou a sentar com uma voz serena. Obedeci por medo, assustado eu estava.

Lembro-me pouquíssimo da conversa toda, mas me senti como nos velhos tempos conversando com Bernard sobre as coisas do mundo, lembro realmente muito pouco sobre tudo, mas de uma coisa eu tive certeza: o vaso jamais sairia do armário e a porta negra não deveria mais ser aberta, pois quando fui acordado por meu funcionário no dia seguinte eu estava sentado na cadeira debruçado sobre a mesa, então eu percebi que a parede estava com o papel intacto, como se eu nunca tivesse descoberto a porta.

Espero que assim permaneça enquanto eu estiver vivo.