1.
     
Enquanto ajeitava o esquife dentro de uma carroça e o cobria com feno,William de Saint’Clair olhava pensativa e revencialmente para ele e revia, mentalmente, tudo que lhe havia sido dito e ensinado nas reuniões do Circulo Secreto Interior. Ali, naquele caixão, estava a prova de que toda a história da civilização ocidental havia sido terrivelmente manipulada, em favor de um projeto que envolvia, não só o poder temporal, mas também o poder espiritual. Não era à toa que Filipe, o Belo, e igualmente o Papa, estavam tão envolvidos nessa conspiração para liquidar com a Ordem do Templo e também para silenciar, para sempre, os seus membros, especialmente os de patentes mais altas, pois estes certamente eram os depositários dos segredos que eles tanto temiam que fossem revelados.
Não que o Papa, ou o rei Filipe e seus ministros soubessem do que se tratava, de fato, esse segredo. Mas eles tinham informações que os Templários haviam descoberto alguma coisa muito importante durante a sua estada na Terra Santa, que poderia, de certa forma, abalar os alicerces do poder da Igreja, ou pelo menos, provocar um comoção semelhante à que a heresia albigense havia provocado tempos atrás.  
Saint’Clair sabia o quanto custara, para a Igreja de Roma, a guerra contra os hereges cátaros. E ela não havia exterminado totalmente a heresia, pois, como ele sabia, ideias não se matam senão com outras ideias melhores. E a Igreja romana, para os espíritos mais esclarecidos daquela parte do país, onde o catarismo floresceu, nunca os convenceu de que tinha uma doutrina melhor do que aquela que os cátaros professavam.
De fato, a doutrina que o Círculo Interno Superior da Ordem do Templo professsava era praticamente a mesma que os cátaros adota-vam. Para os hereges albigenses, Jesus nunca foi “Filho de Deus” nem ressuscitara para subir ao céu em corpo presente. Essa era uma lenda, uma mistificação criada pelos seus discípulos, para vender aos judeus a ideia de que Jesus era, de fato, o Messias da profecia. Foi uma conspiração urdida por seus seguidores, que os mestres da comunidade essênia, junto com Maria Madalena e José de Arimatéia, os únicos detentores da verdade sobre o que realmente aconteceu com corpo de Jesus, deixaram que acontecesse e se espalhasse porque interessava aos seus propósitos, que era espalhar a doutrina cristã pelo mundo romano, já que entre os judeus ela estava sendo violentamente reprimida.
Os essênios haviam sido dizimados nas guerras contra os romanos nos anos 60-70 da era cristã, e nada sobrara dessa comunidade de Filhos da Luz para contar a história da verdadeira origem do cristianismo. Quanto aos discípulos de Jesus, que estavam sendo caçados pelo Sinédrio judeu como criminosos, o surgimento do rabino Saulo de Tarso foi um grande achado. Saulo era um fariseu esperto e ambicioso, que ao ser designado pelo Sinédrio para uma missão de prender e silenciar os seguidores do Nazareno, como os líderes religiosos judaicos chamavam Jesus, acabou encontrando na história e na doutrina dele o seu próprio caminho para realizar as suas ambições pessoais, de tornar-se, ele mesmo, lider de uma congregação. Como um mero rabino judeu, da odiada seita dos fariseus, ele nunca ficaria famoso. Mas como líder de uma nova religião, que começava a conquistar a população do Império, ele se tornaria conhecido em todo o mundo romano.
Saulo sabia que o mundo romano era um caos espiritual, devido à influência das tantas crenças que eram professadas pelos diversos po-vos que Roma conquistara. Crenças orientais misturadas com antigas tradições egípcias; os mitos e o pensamento grego, desenvolvido pelos novos filósofos que seguiam as ideias de Platão e Aristóteles; a forte atração que a religiões orientais, o mistraísmo principalmente,, exerciam sobre as tropas romanas. E no meio de tudo isso, o judaís-mo com sua crença monoteísta e elitista, que tanta confusão e repulsa provocara nos outros povos, ao longo da história, e ameaçava, justamente naquele momento, levar o povo judeu à extinção.
Saulo, que falava latim e grego, além do aramaico, a língua do seu próprio povo, mudou o seu nome judeu para Paulo, um nome romano. E passou a pregar uma doutrina nova que tranformava o Messias judeu  ̶  um líder carismático que a crença judaica esperava que seu Deus, Jeová, mandasse para libertá-los do cativeiro, como antes Moisés fizera  ̶ em um deus universal, palatável para os influenciáveis habitantes do Império Romano, cujos espíritos vazios e crédulos estavam prontos para serem preenchidos com qualquer ideia que lhes desse um conforto para a vida díficil e sofrida que eles viviam. E assim, o Messias judaico foi fundido com o deus Mitra, da religião persa, com o deus Osíris, dos egípcios e com a idéia de um salvador universal, o Cristo, arquétipo cultuado pelos filósofos gregos que professavam as ideias dos estóicos, dos neoplatonicos e dos aristotélicos. Tudo isso, para Saint’Clair e seus Irmãos do Círculo Interno Superior era visível pela leitura dos Atos dos Apóstolos, pois aquele relato, que narra o nascimento do movimento cristão, em sua primeira parte, mostrava claramente que os apóstolos de Jesus tinham em mente apenas e tão somente a catequização do povo de Israel. Mas a partir de certo momento, o relato muda bruscamente de direção, com a entrada de Saulo de Tarso na história, e o Messias judeu se transforma no Cristo universal.
Dessa miscelânea nasceu o credo chamado Paulino, que a Igreja de Roma adotou e vendeu para o imperador Constantino, que nele viu a possibilidade da unificação do então esfacelado império romano através de uma crença única.
Saint’Clair aprendera, através da doutrina veiculada no Círculo Interno Superior, que o apóstolo Pedro, embora tivesse sido o princi-pal líder da Igreja de Jerusalém, que os discípulos de Jesus fundaram logo após a sua morte, nunca estivera em Roma. No entanto os líde-res da Igreja de Roma haviam se apropriado desse fato e inventado que o Papa era o sucessor de Pedro no comando da Igreja fundada por Jesus.
A Igreja de Roma, portanto, era uma dolorosa farsa e uma cruel usurpadora da verdadeira doutrina. E os Irmãos do Templo, durante mais de um século, haviam vertido o seu sangue lutando por uma grande mentira.
 
2.

   
  Uma das acusações mais graves lançadas contra os Templários foi a de idolatria. Há muito já se falava que os membros da Ordem, em seus rituais, eram obrigados a adorar um estranho ídolo que alguns descreviam como sendo uma cabeça barbada, que usava uma espécie de turbante, à moda dos antigos rabinos judeus. Alguns diziam que ela se apresentava olhando para três direções e segundo algumas informações, possuia propriedades mágicas. Além de outros poderes, essa cabeça teria o condão de garantir, para aqueles que a adorassem, a salvação de suas almas, a vitória nas batalhas e também infinitas riquezas. Além disso, podia fazer as árvores florescerem e a terra germinar.  
Coincidentemente, a primeira vez que esse assunto apareceu no processo movido contra o Templo foi durante o interrogatório de Hugues de Peyráuld.
– Consta que em algumas cerimônias rituais praticadas nos Capítulos mais avançados de vossa Ordem era solicitado aos participantes que adorassem um ídolo na forma de uma cabeça humana. Como era esse ídolo e como faziam para adorá-lo? ─ perguntou o inquisidor.
– Existia, sim, uma cabeça – respondeu Peyráuld. – Eu a vi em Montpellier, quando participei de uma reunião naquela preceptoria. Fiz-lhe as reverências pedidas, assim como todos os Irmãos presen-tes. Não as fiz de coração, mas apenas com as palavras do ritual.
─ Que palavras eram essas? ─ perguntou o inquisidor.
─ Eram palavras em uma língua estranha, que eu não conhecia ─ respondeu Peyráuld. ─ Apenas as repeti sem entender.
– E como era esse ídolo?
      – Era semelhante a uma cabeça humana. Tinha uma barba negra. Parecia estar viva e seus olhos nos acompanhavam por toda parte. 

      Evidentemente, Hugues de Peyráuld mentira a esse respeito. Pois em quase todos os depoimentos dos monges que se referiram ao estranho ídolo, consta o seu nome como sendo um dos presentes nas cerimônias onde ele era apresentado.
“Peyráuld”, disseram eles, era o guardião dessa “relíquia”, que se-gundo alguns Irmãos era o maior tesouro templário, pois era dele que vinham todas as riquezas do Templo.
 
 3.
 
─ Porque usais essa corda de linho presa à vossa túnica? ─ Perguntou o inquisidor a Gerárd de Beauvais, preceptor da província templária do mesmo nome, durante o inquérito que ele conduziu contra os Templários presos em sua diocese.
─ Porque é costume da Ordem, Eminência. Todos os monges a recebem por ocasião de sua recepção na Irmandade. Ela nos protege e nos guarda ─ respondeu ele.
─ De que forma ela vos protege e guarda?─ quis saber o inquisidor.
─ Ela é benzida e consagrada ─ respondeu o preceptor.
─ Por quem ela é benzida e consagrada? ─ perguntou o inquisidor, que já entrevia onde aquilo ia chegar.
─ Por ele ─ respondeu Gérard Beauvais.
─ Ele quem?
─ O Salvador.
─ Podeis nos dizer quem e como ele é, esse vosso Salvador?
─Não sei ao certo, Eminência, pois só o vi uma vez, numa reunião do Capítulo que frequento. Mas era uma espécie de cabeça barbada, que parecia com a de um homem vivo.
─ Onde e quando a vistes?
– Vi essa cabeça no Capítulo de Montpellier, dirigido pelo Irmão Peyráuld – disse o preceptor de Beauvais. Todos os frequentadores do Capítulo a adoravam. Eu também o fiz, mas falsamente e não com o coração...
– Como se parecia? – perguntou o inquisidor.
– Era um crânio de metal imitando uma cabeça humana, com um rosto coberto por uma grande barba negra.
– Como era esse rosto?
– Terrível! Parecia que estava vivo. A cada vez que olhava para ele eu era invadido por um extremo terror...
– E porque adorou essa cabeça?
– Tinhamos feito coisa pior negando Cristo. Adorar aquela cabeça parecia ser pecado menor. Mas nunca a adorei com firmeza de cora-ção...
– Por que vos era exigida a negação de Cristo e que cuspísseis na cruz?
– Foi-nos dito que não estávamos negando a pessoa de Jesus, mas apenas a ideia do Cristo que a Igreja nos ensinara. Esse sim, era um Cristo falso, que nunca existira, pois que fora inventado pela Igreja.
– E de onde vieram tais heresias? – perguntou o inquisidor.
– Das provas e informações que os Mestres fundadores da Ordem diziam ter levantado durante sua estada na Terra Santa.
– Que provam são essas?
– Não sei ao certo, Eminência, pois somente os altos dignitários da Ordem detém essas informações. Mas a tal cabeça barbada era uma delas...
 
4.
 
Jacques de Molay e os outros dois altos dignitários do Templo, Geoffroy de Charney e Geoffroy de Gonneville, perguntados sobre a tal cabeça, disseram nunca a ter visto. Informaram que só haviam ou-vido falar dela através de uma menção que o Papa Clemente V havia feito certa vez, de que em alguns Capítulos mais avançados da Or-dem estaria havendo um culto idólatra. Mas fora disso, alegaram nada saber e acreditavam tratar-se de uma maledicência dos inimigos da Irmandade.
Eles também mentiram a esse respeito. Jacques de Molay e Geoffrey de Charney, especialmente, sabiam muito bem do que se tratava. No chamado Circulo Superior Interno, grupo de altos dignitários do Templo, Abhulaphia, também conhecido como Baphomet ─ o Rosto Sagrado ─ era bem conhecido e todos sabiam de quem era e o que era aquela sagrada relíquia que lhes era apresentada na intimidade do Capítulo LVIII. O medo de que essa relíquia fosse descoberta e caísse nas mãos dos seus inimigos era a principal precupação do Grão- Mestre depois que foi preso.
     Jacques de Molay lembrava-se bem, que em um dos conclaves em que todos os altos dignitários do Templo estavam reunidos, ele alertara os Irmãos a respeito das maledicências que estavam sendo assacadas contra a Ordem. Elas se referiam a certos comportamentos estranhos, que estariam sendo praticados em algumas preceptorias, quando da recepção de novos membros.
     Coincidência ou não, eram principalmente das preceptorias francesas que vinham tais informações, pelo que coube ao inspetor ─ visitador da Ordem, Hugues de Peyráuld, vestir a carapuça, quando tais assuntos foram levantados pelo Grão – Mestre durante esse conclave.
– A que comportamentos estais se referindo? – indagara ele, já na defensiva.
– Ao modo como os veteranos exigem a submissão dos noviços, obrigando-os a beijar, de fato, suas partes íntimas. Se tais exigências são feitas – disse Jacques de Molay, isso é degradante. Vós bem sabeis a que finalidade se destina os beijos rituais.
– Ouvi dizer que isso acontece em algumas das nossas iniciações – respondeu Peyráuld, com certa displicência. – Mas não vejo motivo para preocupação. Trata-se apenas de uma brincadeira de mau gosto aplicada pelos veteranos contra os noviços. Em todas as instituições há tradições similares que os mais antigos aplicam aos mais novos. Serve para demonstrar aos iniciandos que eles devem obediência absoluta aos seus mestres. 
– Pois deveis tomar cuidado com essa, que vós chamais de “brincadeira” – disse de Molay – Lembrai-vos que existe um código de moral em nossa Ordem que nos exorta a manter um comportamento digno nesse sentido. Os beijos de recepção, como sabeis, cumprem uma função ritual.
─ Sabemos disso, Irmão Grão-Mestre, mas não temos como evitar que alguns Irmãos mal informados tomem esses rituais como forma de trote para com os noviços ─ respondeu Peyráld.
─ E quanto à prática de sodomia, que dizem exigir dos noviços, o que tendes a dizer? ─ inquiriu De Molay.   
Hugues de Peyráuld deu de ombros, como se a questão fosse de somenos importância.
─ Ao que sei, nada além do que ocorre na maioria das Ordens monásticas, onde nem todos os Irmãos tem fortaleza de espírito suficiente para resistir aos apelos da carne ─ respondeu o inspetor-visitador.
─ Sabeis que a nossa Ordem exige o voto de castidade para os monges-cavaleiros que recebem o manto branco e se tornam dignos de frequentar os capítulos filosóficos. Isso porque, segundo nossa crença, as relações entre homens e mulher são como obra de porcos e de cães. Somos proibidos de nos juntar a mulheres, para não enfraquecer a fé na santidade de nossa causa. Mas o coito com homens também nos é interdito. Isso é coisa de sodomitas e, como sabeis, sodomia é pecado. Lembrai-vos que somos monges e cavaleiros. Como monges praticamos a castidade e como cavaleiros prestamos o culto ao Sagrado Feminino.
─ É por isso que cultuamos Sofia, a Santa Virgem, Sehkinah, a presença divina entre nós ─ lembrou o preceptor da Normandia, Geoffroy de Charney.
E à menção de Sofia, a deusa mãe da sabedoria, todos os Irmãos ali reunidos se persignaram e rezaram a prece ritual, em louvor à Virgem Maria: “Santa Maria (...) mãe sempre virgem e preciosa, Ó Maria, salvação dos enfermos, consoladora dos que a vós recorrem, triunfadora sobre o mal e refúgio dos pecadores arrependidos, aconselhai-nos e defendei-nos. Defendei a nossa Ordem, fundada por vosso santo e caro confessor, o vosso caro Bernardo (...).
─ E que São João Batista, nosso padroeiro, nos proteja e ilumine ─ completou, por fim, Jacques de Molay.
─ Amém ─, disseram todos.
─ Porque estais a perguntar-me todas essas coisas, se vós estais a par de tudo que acontece em nossas reuniões capitulares? ─ indagou Peyráuld, com certo aborrecimento na voz.
– Porque devemos ter muito cuidado em relação a essas coisas – disse De Molay. – Nós, os altos dignitários do Templo, sabemos o que significam esses simbolismos ritualísticos e para o que servem. Mas nem todos os nossos Irmãos os compreendem. Por isso eles são mantidos em segredo e somente os mestres do Círculo Interno Superior têm inteiro conhecimento do seu conteúdo e significado. Se esses segredos caírem em mãos profanas, temo que eles venham a ser mal interpretados e nos causem muitos danos.
Sabeis ─ continuou o Grão-Mestre ─ que o beijo ritual se destina a transmitir ao novo Irmão a energia que percorre o plano astral e se aloja na base da nossa medula espinhal. É um sacro mistério que aqui se invoca e não deve ser usado como motivo para a prática da promiscuidade. Por isso ele só é aplicado em nossos graus superiores e nunca na iniciação de noviços. Na iniciação deve ser dado apenas o ósculo no rosto. E a negação do Cristo como filho de Deus é uma prova da confiança que o noviço deve ter na Irmandade. Quem a faz sem contestar mostra firmeza e fé nos postulados da Irmandade e no seu desejo de servir à Ordem. Não deve ser dito ao noviço, na cerimônia de iniciação, que nós não negamos Jesus Cristo, mas sim a falsa doutrina que a Igreja Romana criou em seu nome. Renegamos a mentira criada em relação a ele e não sua veneranda figura, cuja relíquia, como bem sabeis, é objeto da nossa adoração. Tudo só lhe será revelado quando ele atingir os graus mais altos da nossa hierarquia.
─ Compreendo vossa preocupação, Irmão Grão-Mestre. Mas a compreensão desses mistérios não faz parte dos ensinamentos dados aos cavaleiros iniciantes, nem aos que não fazem parte do Círculo Interno Superior. Mas, como sabeis, às vezes algumas informações sobre as cerimônias praticadas nos Capítulos mais avançados vazam para os Irmãos de grau inferior, e por isso alguns as levam na brincadeira, achando que se trata de um deboche que deve ser aplicado aos noviços ─ disse Hugues de Peyráuld.
Jacques de Molay franziu a testa em sinal de preocupação. Ele não podia deixar de reconhecer que o inspetor-visitador tinha razão. Como aqueles homens iletrados e ignorantes, que constituíam a maioria dos Cavaleiros Templários, iriam entender a sutileza de tais concepções? Ele mesmo era analfabeto e mal as entendia, embora as aceitasse de coração...
 De certo que ele sabia para o que servia aquela tradição que havia sido implantada na Ordem, que obrigava o noviço a negar Cristo por três vezes e cuspir na cruz. Ele mesmo fora incitado a fazer aquilo por ocasião de sua iniciação. Tal procedimento se afigurara como uma monstruosidade ritual aos seus olhos. Como ─ pensara ele ─ uma Ordem que se propunha a defender a fé cristã ordenava a seus iniciados que renegassem o seu próprio Senhor? Como um cavaleiro que era convidado a tomar a cruz, poderia ofendê-la daquele modo, cuspindo nela? Jacques de Molay se recusara a cumprir aquele estranho e maligno ritual, em princípio. Mas seu desejo de vestir o manto branco era mais forte que suas convicções. Se para ser um Templário, sonho que ele acalentava deste a mais tenra infância, tinha que submeter-se a aquele ritual profano e obsceno, então ele o faria. Não o faria de coração, mas apenas pró-forma. Graças à sua dedicação e discreção, em nunca contestar o que via e ouvia nos ensinamentos dos Capítulos, ele subiu rapidamente na hierarquia da Ordem. Em menos de vinte anos tornara-se o seu Grão-Mestre.
 
5. 
     ─ Foi o Irmão Robert de Creon, o nosso segundo Grão-Mestre que iniciou essa prática ─ lembrou Peyráuld. ─ Ele a fez para que ela funcionasse como uma espécie de prova de coragem e fé em nossa verdadeira crença e não naquela que a Igreja queria nos fazer acreditar.  
– É como eu a entendo ─ disse De Molay. É uma prova de fortaleza e firmeza na nossa fé.
─ Pois é ─ disse Peyráuld. ─ Mas como os Irmãos de menor grau não entendem o significado desse ritual, acham que tudo não passa de uma brincadeira que deve ser aplicada aos noviços. E acabam exagerando.
─ Essas “brincadeiras”, como o Irmão Peyráuld as chama ─ disse de Molay ─ poderão trazer complicações para a Ordem. Peço ao irmão-visitador que instrua todas as nossas preceptorias sobre o assunto e que as suprima, daqui por diante. Como sabeis, a Ordem tem inimigos que só estão esperando que cometamos alguns deslizes para atacá-la. Peço também a todos os preceptores aqui reunidos que tomem muito cuidado em relação a esses assuntos.
─ E quanto ao culto à Sagrada Cabeça? Desejais também aboli-lo? ─ perguntou Peyráuld.
─ Não, isso não ─ disse de Molay. ─ Ele é o que há de mais belo e importante em nossa liturgia.
─ Há quem diga que se trata de um culto demoníaco ─ disse Peyráuld. Que a Sagrada Cabeça é a representação do demônio.
─ Também dizem que é a cabeça de São João Batista, o mestre que batizou e instruiu o Senhor Jesus.  E igualmente que ela é o símbolo da Sabedoria, que os sábios muçulmanos chamam de Abhulaphia, o Pai da Compreensão; ou então a Inteligência Suprema, como o chamam os nossos monges que estudam essa sagrada ciência dos judeus, chamada Cabala...
─ Muitos dizem que se trata da cabeça do fundador da nossa Ordem, Hugues de Payns ─ observou Geoffroy de Gonneville, preceptor de Aquitânia.
─ E outros, que se trata da cabeça de Santa Úrsula, a rainha das Dez Mil Virgens─ disse Willian de La More, Grão-Mestre do Templo inglês.
 
A vista de todas essas manifestações, o semblante de Jacques de Molay relaxou. Nem mesmo entre os Irmãos da Ordem o estranho culto tinha um consenso. Era isso mesmo o que os altos dignitários do Templo pretendiam. Que esse segredo se diluísse em mitos e estórias de conteúdo difuso e extraordinário, pois essa era a melhor forma de ocultá-lo aos olhos profanos.
Que apenas um círculo bem restrito de Mestres do alto escalão soubesse o verdadeiro significado daquela relíquia. Lembrou-se do diálogo que, semanas antes da sua prisão ele tivera com o preceptor da Normandia, seu fiel companheiro Geoffroy de Charney.
─ Precisamos decidir o que fazer com a nossa relíquia sagrada ─ disse De Molay a Charney.
─ Sim, Irmão Grão ─ Mestre. Podemos mandá-la para Lirey, onde vive minha família ─ sugeriu o preceptor da Normandia.
─ Não é seguro ─ responder o Grão ─ Mestre. ─ Em caso de uma investigação, as propiedades da nossas famílias serão as primeiras a serem varejadas.
─ O que sugeris que se faça a respeito?─ perguntou Charney. Eu sei da importância de mantê-la oculta e bem guardada.
─ Sim, meu Irmão ─ disse de Molay. ─ O mundo não está preparado para uma revelação desse tipo. Sabeis quanta bobagem se fala a esse respeito.
─ É verdade, meu Irmão ─ respondeu Charney, com um simulacro de sorriso. ─ Dizem até que nós somos adoradores de Maomé.
─ Ou adoradores de Satã ─ respondeu de Molay, com um suspiro.
─ Tudo isso é fruto da imaginação desse povo ─ disse Charney. ─ Afinal, os franceses são um povo muito supersticioso. Adotamos o cristianismo, mas continuamos fieís às nossas raízes pagãs, herdadas dos druídas.
─ Não tenho muita sabedoria nessas coisas, Irmão Charney, mas acho que tendes razão. Somos mesmo muito supersticiosos. Vede, por exemplo, essa história de que é possível matar um inimigo, fazendo dele uma imagem de cera e espetando-lhe um punhal ─ disse de Molay, com um sorriso.
─ Ou colocando o nome dele na boca de um sapo, que depois é costurada. Quando o sapo morrer de fome, o desafeto também morrerá.
─ Pois é. Bruxaria, feitiçaria, magia negra. Dizem que nós somos mestres nessas artes satânicas ─ disse Charney, balançando nega-tivamente a cabeça, com um sorriso entre zombeteiro e triste.
─ Se eles soubessem qual é o nosso verdadeiro segredo...─ suspirou o preceptor da Normandia.
─ Eles jamais entenderiam ─ respondeu de Molay.─  Por isso, a nossa relíquia deverá ser sempre e apenas uma coisa misteriosa, uma lenda. Nunca poderão saber a verdade sobre ela.
─ Dói-me, entretanto, que pensem que adoramos ídolos, ou que praticamos rituais satânicos e que estamos contaminados de heresia e promiscuidade ─ disse Charney.
─ Á mim também, meu Irmão ─ disse De Molay. ─ Mas o que aconteceria se soubessem que nós possuímos a única relíquia verdadeira do nosso Senhor Jesus e que ela é a prova de que ele não era um Deus, mas um homem que morreu e foi sepultado como toda pessoa comum?
─ Isso nós nunca podemos revelar, Irmão ─ respondeu Charney. Mas me preocupa o ritual que foi introduzido na nossa Ordem pelo irmão Robert. Acho que não precisávamos fazer tais coisas para ensinar aos noviços os fundamentos das nossas crenças.
─ Quanto a isso vós tendes razão, meu Irmão ─ reconheceu de Molay. Mas essas coisas só são praticadas na França, e com mais frequência nas preceptorias occitanas, que como o Irmão sabe, ainda não se esqueceram das doutrinas dos Irmãos da Luz.
─ Pois é, Irmão. É disso que tenho medo. Os Irmãos da Luz estavam certos naquilo que eles pensavam e faziam. E por isso foram dizimados. O mundo não está preparado para saber a verdade sobre o Nosso Senhor. Por isso eu temo também por nós ─ completou de Molay.

6  
     Durante o inquérito foram feitas a todos os Templários perguntas sobre a misteriosa cabeça. Os depoimentos colhidos não permitiram esclarecer muita coisa. Nenhum dos depoentes soube dar uma des-crição exata do tal ídolo, o que levou os inquisidores a concluir que ele não tinha uma forma definida, ou que cada capítulo da Ordem tinha sua própria imagem dele. As descrições mais frequentes o davam como sendo uma cabeça de três rostos, um olhando para a frente e os dois outros, um para a direita e outro para a esquerda. Em algumas preceptorias apresentava-se aos iniciados uma cabeça barbada, que usava um turbante semelhante aos que os rabinos ju-deus usavam. Em outras era uma cabeça feita de metal, representan-do um homem jovem, de barba e cabelos negros. Em outras um crânio comum.
 O que significava esse ídolo e quais eram as palavras usadas no ritual, nenhum dos acusados inquiridos soube, ou quis explicar. Em várias das preceptorias invadidas e varejadas pela polícia de Filipe, o Belo, e também nas preceptorias de outros reinos, procurou-se deses-peradamente os tais ídolos e rituais escritos, que se encontrados se-riam uma prova contundente da heresia templária. Mas nada foi encontrado que pudesse servir de prova irrefutável dessa prática.
Tudo que se referia à tal cabeça era muito contraditório. Um notário público, chamado Antoine Siccus, de Vercellyz, que estivera no Oriente a serviço do Templo deu um estranho testemunho a esse respeito. Disse ele que ouvira essa história em Sidon, contada por um monge da Ordem. Ela acontecera na Armênia, onde um cavaleiro templário se apaixonara por uma jovem. E ela por ele. Mas estando ele impedido de possui-la em razão dos seus votos de castidade, e ela de desposá-lo pela mesma razão, a jovem tirou a própria vida. O ca-valeiro, enlouquecido de dor e de paixão, foi, à noite, ao túmulo da jovem e violou o cadáver. 
Fez com a jovem morta aquilo que não tivera coragem de fazer enquanto viva. Após terminar o seu infame ato de necrofilia, ouviu uma vóz que dizia: “voltarás daqui a nove meses para ver o resultado do teu ato.” Nove meses depois o cavaleiro voltou ao túmulo da sua amada e lá encontrou uma cabeça humana entre as pernas da jovem e o cadáver na posição e na condição de uma mulher que acabara de dar a luz. E novamente uma vóz se fez ouvir: “guarda bem essa cabeça. Dela lhe virão todas as riquezas futuras.”
Mas outros depoentes, instados a falar sobre o assunto, foram menos delirantes que o inefável notário. Disseram, sem muitas contradições, que os Templários possuiam reliquias, aos quais davam muito valor. Uns diziam que eles tinham uma cruz de madeira, feita com lascas da verdadeira cruz em que Jesus foi crucificado e sobre essa cruz havia uma cabeça esculpida. Outros diziam que um gato de três cabeças costumava ser adorado nas cerimônias dos Capitulos mais avançados. Houve quem dissesse que o tal ídolo se tratava de uma pintura, mas a maioria informou que era mesmo uma cabeça barbada. Essa cabeça, diziam, era milagrosa, pois fazia cair chuva quando dela se precisava e afastava pestes quando elas tomavam conta das aldeias. E a cordinha de linho, que eles recebiam para amarrar em volta da cintura era benzida e consagrada em cerimônia perante aquele ídolo. Isso é o que fazia um monge templário ser tão destemido em batalha, porque aquela cordinha o protegia.
 Por ocasião da invasão do castelo do Templo, em Paris, o monge encarregado da guarda e administração dos bens da Ordem foi in-timado a apresentar todos os objetos de culto existentes naquele edifício. No auto de apreeensão e guarda que se lavrou do ato, o oficial encarregado escreveu que “os comissários mandaram que William Pidoye e seus companheiros Willliam de Gisors e Raignier Bordone, apresentassem todas as cabeças em metal ou madeira, encontradas no edifício do Templo”. Os três apresentaram aos comissários uma grande cabeça trabalhada em prata amarela; tinha rosto de mulher e interiormente ossos de um crânio, envolvidos em um pano branco; por cima havia um sudário, feito de tecido fino ou gaze da Síria, de cor avermelhada, cobrindo-a. Havia um número, numa etiqueta, cozida nesse pano: Caput LVIII. Perguntado o que significava aquela cabeça, os ditos Templários responderam que se tratava “da cabeça de uma das Onze Mil Virgens que foram sacri-cadas pelos bárbaros hunos quando as hordas de Átila passaram por Colônia.” Nada mais foi encontrado na casa do Templo.
Em outras preceptorias, por toda a Europa e Ultramar, os in-quisidores encontraram algumas relíquias que, vagamente, foram associadas à lenda do famoso ídolo templário. Entretanto nunca se chegou a nenhuma conclusão do que era, ou do que significava esse ídolo. Alguns dos cavaleiros inquiridos sugeriram que esse culto tinha se originado nas crenças dos muçulmanos, que veneravam o seu profeta Maomé e por isso, talvez, o nome do tal ídolo. Outros definiram o assunto como “segredo da Ordem”, só conhecido pelos mestres do mais alto escalão. Assim criou-se a lenda do ídolo Baphomet. Poucas vezes na História, um segredo foi tão bem camu-flado como esse.


( DO LIVRO "OS SANTOS MALDITOS", NO PRELO.)