Uma vida "barata"
Todos os dias quando vou me vestir elas estão lá, malditas baratas a me espionar. Suas antenas captando cada movimento meu, com suas patas pequenas e serrilhadas, passando por entre minhas roupas, deixando marcas nojentas que nem quero me lembrar.

Vocês acham mesmo que baratas não mordem?! Pois vou lhes contar. Uma vez fui vestir uma camisola, e a danada grudou em meu pescoço a me mordiscar, parecia que queria me dizer algo, mas quem se importa? Não entendo “baratês”. A rotina é sempre a mesma: se vou ao banheiro, ficam a vigiar minha nudez, se deito em meu quarto para descansar, as criaturinhas selvagens estão a me acalentar. O que querem as baratas? Não sei. Só sei que em todo lugar elas vão nos acompanhar...

A partir de agora não irei mais me queixar das baratas. Vou começar observá-las, e tentar criar uma receita mortal, algo novo, jamais testado por alguém. Que pareça loucura, ou perda de tempo o que estou tentando fazer, se eu não tentar como vou saber? O que as vezes parece ser loucura, pode dar certo.

Passo algumas noites em claro, tentando compreender o inútil comportamento desses insetos impensantes. Elas estão por todo lugar, na sua casa, na minha, em todas as ruas, becos e comércios. Depois de várias noites observando-as vagar na escuridão de minha casa em busca de comida, me dei ao prazer de esmagar uma delas, e é incrível como a barata tem a capacidade de mesmo esmagada, colocando para fora suas entranhas, rastejarem de volta a seus esgotos imundos. No outro dia já não se encontram no mesmo lugar. Aguentam firme, fingem-se de mortas para conseguir sobreviver, mesmo que machucadas expelindo sua massa interior! Isso começou a me trazer algumas ideias... Sim! Por que não? Usarei daquela substância interior, para o preparo de minha receita. Sei que não resistirão, e quero estar presente, quero apreciar a reação, certamente sentirão o que tenho tentado sentir há muito tempo... Fiquei curiosa, será que posso experimentar? Não será uma dose suficiente para que possa me matar, será apenas o necessário para sentir nem que seja só na ponta da língua, o gostinho da essência. Não fiquem com nojo, tenham coragem, o diferente e o novo sempre atraem.

Quero preparar o veneno com a substância interior de si próprias, para que antes de morrerem, pudessem pelo menos uma vez em suas vidas inúteis sentir o seu próprio gosto, o sabor dos seres que vivem só, no escuro vazio, quando não se tem ninguém em casa, alimentando-se das migalhas que caem no chão. Ninguém as escutam, nem de dia e nem a noite, elas não têm voz, se tivessem, poderiam declarar algo em sua defesa. Acho que não. Quem daria ouvidos a coisas repugnantes? Pobres baratas.... Pobres nada! Ninguém sentirá pena delas, são tão insignificantes, que chegam a causar asco nas pessoas.

Devo colocar algo doce na mistura, o doce sempre atrai. Porém, no fim das contas, o que era doce vira fel, e o silêncio toma o lugar da profunda dor. Mas será mesmo que dói? Nem quando são esmagadas, não sabemos. Quem se importa? Olhem para elas, olhem bem, vocês sentem pena?! Ninguém sente nada, não existe remorso algum diante da trágica cena e elas nem sabem o porquê de estarem ali, não têm uma missão a ser concluída. Enquanto a nós? Será que temos? Será que devo sentir algo? Se todos fazem isso, sigo os exemplos. Não é comum pessoas normais deixarem que baratas andem em nosso meio, se não o fizer, serei chamada de louca! De qualquer forma serei chamada de louca ou nojenta. Mexer naquela massa branca interna, pode ser a solução de que todos precisam para acabar com as baratas que sobem e descem os interiores e exteriores de suas casas.

De uma coisa eu sei, posso viver em paz, tranquilamente, enquanto baratas morrem lentamente no silêncio vasto da noite. E morrem ainda mais quando vem surgindo a aurora, e os galos cantam, pássaros voam, pessoas levantam, carros funcionam, músicas tocam.... Pelo menos tentei ouvir suas vozes mudas, entender seus comportamentos insanos.

Observando esses insetos, extraindo do que tinham para oferecer e me atrevendo a provar aquela nojeira, acordei de um sonho e não tive a coragem de usar suas próprias entranhas para matá-las. E acreditem se quiser, descobri que temos muito em comum!