O infinitamente pequeno

Meu amigo Y., ainda às voltas com sua enigmática transmutação do universo (a qual seria completada, segundo suas previsões, na segunda década do século XXI), revelou-me após um almoço no Clube dos Exploradores que para sua concretização, trabalhava com outra invenção baseada nas ideias de Ernest Rutherford: energia atômica.

- Você é um homem culto - disse-me enquanto fumávamos nossos cachimbos no jardim do Clube - e certamente já deve ter ouvido do fenômeno do decaimento radioativo, que ocorre naturalmente com certas substâncias...

- De fato... há quem apregoe supostas virtudes terapêuticas do consumo de tais substâncias - ponderei. - Lembro-me de ter visto há alguns anos, um anúncio de certos cigarros alemães da marca Batschari, enriquecidos com rádio... mas, particularmente, e até prova em contrário, considero tais alegações como não mais do que uma versão moderna dos "elixires milagrosos" vendidos por charlatães no Velho Oeste.

- Você tem razão - acedeu Y. com gravidade. - Substâncias radioativas não devem ser consumidas diretamente. Na verdade, desempenham papel primordial no meu projeto de transmutação universal justamente pelo seu poder de decaimento, ou degradação, da matéria. Todavia, se explorado corretamente, o poder latente nas substâncias radioativas, a energia atômica, pode nos conduzir aos reinos ocultos nos átomos da matéria comum.

- Ainda aquela ideia de que há sistemas solares em cada átomo? - Indaguei.

- Não apenas uma ideia - declarou ele com determinação. - Estou finalizando a construção de um veículo, o qual batizei de "Atomóvel", que me permitirá ser o primeiro homem a descer ao nível do infinitamente pequeno.

- Pretende explorar um universo atômico? - Indaguei.

- Buscarei algum onde não haja vida, para testar em escala reduzida o meu projeto para o universo que nos cerca - assegurou-me.

- Parece-me uma iniciativa prudente... pelo menos no que diz ao nosso universo. Quanto ao seu veículo, quando pretende fazer a viagem inaugural?

- Provavelmente, em dez dias. E você está convidado para testemunhar minha descida ao reino atômico!

Disse-lhe que assim o faria, já que imaginava que Y. pudesse precisar de ajuda caso algo desse errado no seu experimento. Logo, pude comprovar que minhas preocupações eram fundamentadas.

* * *

Y. mantinha um laboratório num galpão em sua propriedade rural, na cidade interiorana de S.. Dentro dele, além de bancadas com a costumeira vidraria utilizada em experimentos químicos, havia três imensas bobinas de Tesla circundando um veículo que parecia um aperfeiçoamento do "Demoiselle" de Santos Dumont. O aparelho possuía cabine fechada para um ocupante e dois motores, montados sobre as asas.

- Este é o "Atomóvel" - declarou ele, orgulhosamente. - O seu combustível, também desenvolvido por mim a partir de elementos radioativos, pode durar meses sem necessidade de substituição.

- E estas bobinas? - Questionei, indicando as ameaçadoras torres que circundavam o frágil veículo numa disposição triangular.

- Elas geram um campo elétrico que interage com os motores do "Atomóvel" e permitem a sua miniaturização - explicou ele.

Em seguida, revelou-me que minha presença ali era mais do que a de mero espectador: eu teria a incumbência de acionar a chave que poria em ação as bobinas, dando início ao processo.

- Você terá apenas que acionar a chave - explicou ele. - Um mecanismo de relógio desligará o circuito em 60 segundos, quando deverei ter sido reduzido ao tamanho atômico. Em dez minutos, o mecanismo irá religar automaticamente as bobinas, me trazendo de volta.

- Pelo visto, você não precisaria de mim para ligar a chave - ponderei.

- É fato. Mas além de servir como testemunha, prefiro ter um amigo por perto caso algo dê errado.

Despedimo-nos com um aperto de mãos e um abraço. Y. embarcou em seu veículo vestido como um aviador: jaqueta e touca de couro, echarpe de lã, óculos de proteção e luvas, um Colt modelo 1908 na cintura, e uma bolsa à tiracolo. Acomodou-se na exígua cabine e fez sinal de positivo com o polegar. Baixei meus óculos de proteção, posicionei-me por trás de uma antepara, e acionei a grande chave que acionava as bobinas de Tesla. O galpão encheu-se com o crepitar e o fulgor de raios artificiais, que corriam de uma bobina para a outra, e mesmo com óculos escuros, fiquei meio cego minutos após o término do espetáculo luminoso.

Quando finalmente voltei a enxergar, o "Atomóvel" havia desaparecido.

* * *

Os dez minutos marcados para que o circuito elétrico fosse novamente acionado pareceram durar anos. Finalmente, o mecanismo de relógio religou as bobinas, e durante 60 angustiantes segundos, raios e relâmpagos percorreram o galpão.

Aguardei até recuperar totalmente a visão, e saí de trás da antepara. No espaço entre as três bobinas, enxerguei um objeto que parecia uma caixa de aço. Aproximei-me dela, e cautelosamente abri a tampa, que não estava travada. Dentro, havia vários cadernos encadernados com o que parecia ser couro marrom e páginas de um material translúcido, cobertos por caracteres pretos que deveriam ter sido impressos por algum tipo de máquina de escrever. Como os cadernos estavam numerados em sua lombada com algarismos romanos dourados, abri a primeira página do número I e verifiquei que havia um mensagem manuscrita em tinta azul na contracapa:

- "Meu caro amigo, a experiência foi um sucesso e descobri todo um mundo maravilhoso aqui embaixo. O único problema é que não calculei que a passagem do tempo no reino atômico transcorreria de modo diferente. Desta forma, os dez minutos que o mecanismo de relógio levará para me trazer de volta, equivalem a cerca de 100 anos onde estou agora. Deixei instruções aos meus súditos para que imprimissem meus diários e os colocassem numa caixa, no local onde cheguei ao mundo deles a bordo do Atomóvel. Você certamente gostará de ler sobre as minhas aventuras, e talvez um dia queira vir aqui conhecê-los, pois há instruções de como construir outros Atomóveis nestes cadernos. Naturalmente, terão que ajustar o mecanismo de relógio, para retornar após alguns meses ou dias transcorridos no reino atômico... ou poderão ter a mesma sorte que eu e ficarem encerrados aqui para sempre. Todavia, não lamento a minha sorte: no reino atômico, encontrei a mim, e à minha ilha desconhecida. E aqui ficarei, para todo o sempre. Seu amigo, Y."

Fechei o caderno e o coloquei novamente na caixa de aço. Seria possível que Y. houvesse realmente sido transportado para um lugar infinitamente pequeno, onde o tempo transcorre de tal forma acelerada que minutos convertem-se em décadas? E, por falar nisso, como decorreria para nós o presumido processo de transmutação universal sem o seu artífice no controle?

Com a caixa nos braços, saí da área delimitada pelas bobinas, em busca de respostas.

- [13-09-2018]