Kadosh- “O reino dos “puros”
 
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     Os rochedos da ilha São Molaise, no norte da Escócia, bem ilu-minados pelo sol que batia em chapa sobre a ilha, foram os primeiros sinais de terra que a esquadra templária avistou ao entrar em águas escocesas. Contornando o maciço bloco de pedra que era aquela ilha, Saint’Clair, em pé sobre o tombadilho do navio capitania, viu, ao longe, cerca de dois quilometros mais ao leste, surgir a ilha chamada Arran. Haviam contornado as costas da Irlanda e estavam agora navegando pelo estreito conhecido como Mull de Kintyre.
       ̶  Irmão Edward, você que conhece bem estas paragens, sabe se há um lugar seguro nessas ilhas para aportarmos, sem que a nossa presença seja detectada pelos habitantes locais? ̶ perguntou Saint’ Clair ao capitão do navio, que estava em pé ao seu lado, olhando pensativamente para os altos rochedos que se levantavam à sua frente.
        ̶  A maior parte dessas ilhas é pura pedra, mas há algumas nes-gas de terra boa no interior e uma enseada próxima àquela ilha à esquerda. Ali a frota poderá aportar e fundear, sem ser vista  ̶  res-pondeu Edward de Saint’Omer, o irmão templário, capitão daquela galé, apontando com o dedo uma ilha a sudoeste. Era a ilha chamada Arran, cujo contorno mal se via em meio à neblina que a envolvia.
         ̶  Dali para o continente, quanto tempo levaríamos? ̶  perguntou Saint’Clair.
      ̶  Acredito que menos de um dia, irmão comandante  ̶  respondeu
Saint’Omer  ̶  mas ali ninguém nos poderá ver do continente, nem sequer do interior da ilha.
      ̶  E quanto aos habitantes da ilha?  ̶  indagou Saint’Clair.
     ̶  Pelo que sei não há habitantes nessa ilha. Só meia dúzia de mon-ges eremitas que habitam nas cavernas locais e raramente saem de-las. Mesmo que nos vejam, não darão conta a ninguém da nossa pre-sença. Dizem que eles não costumam nem falar uns com os outros, para não perturbar a sua concentração ̶ , respondeu Saint’Omer.
     ̶  Espero que tenhais razão  ̶  Irmão Edward. Não gostaria de ter que eliminar esses coitados. Mas a nossa presença aqui na Escócia tem que ficar no mais estrito segredo até sabermos o que foi feito da nossa Ordem  ̶  disse Saint’Clair.
     ̶   Se assim é  ̶  respondeu Saint’Omer  ̶  Arran será o local ideal para nos homiziarmos, por enquanto.
     ̶  Vamos então para Arran ̶  ordenou Saint’Clair. ̶  E depois que nos instalarmos lá, mandaremos uma galé até o continente para explorar o local, pois é aqui que ficaremos até que possamos ter uma ideia mais clara do que está acontecendo  ̶  completou o comandante da esquadra templária.
    E foi assim que os templários sobreviventes ao assalto do Templo na França aportaram na Escócia. Essa fuga garantiria a sobrevivência da Ordem e daria início à sua posterior história como sociedade se-creta, construtora de nações e inspiradora de grandes líderes mun-diais.
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 Jacques de Molay passara toda a sua vida monástica sonhando com um reino templário próprio. Esperava, ainda em sua gestão, que
esse desejado projeto pudesse ser efetivado. Tudo já estava pronto e planejado para declarar parte da região da Provença, mais propria-mente o território do antigo reino de Septimania, velho reduto de ju-deus e muçulmanos na Europa, como domínio autônomo, governado pelo Templo.  
Sabia que iria encontrar resistências. A Igreja reagiria, Filipe, o Belo, também não iria entregar docilmente parte de seus domínios, nem gostaria de ver um estado hostil encastelado nas suas próprias entranhas. Nem o rei de Aragão, senhor de alguns feudos naquele território, iria gostar disso. Mas de Molay acreditava que a força militar do Templo, a sua riqueza e a fama de grandes guerreiros que seus cavaleiros haviam adquirido acabariam por triunfar.
     Se ele fosse um pouco mais estudado, pensou, ou tivesse se pre-parado juridicamente para a situação, contratando bons advogados, como fizera o Hospital de São João, por exemplo, estaria agora me-lhor armado para responder ás acusações de Nogaret e suportar, com mais firmeza, às invectivas de William de Paris.
     Mas logo se conformou e abandonou esse pensamento. Fossem ou não verdadeiras as acusações de heresia que se faziam contra a Or-dem, essa era apenas uma desculpa. Na verdade, o móvel de tudo isso era a própria Ordem, o seu poder político e econômico e sua imensa riqueza material. O grão-mestre templário rememorou todas as negociações das quais participara nos últimos dois anos, a proposta do papa, de fusão das ordens militares, a tentativa de Filipe o Belo, de iniciar um de seus filhos nos quadros da irmandade, a “bola preta” que ele dera nessa pretensão, os ensaios jurídicos produzidos pelos advogados do rei, justificando a supressão do Templo, as pró-prias queixas feitas por vários prelados da Igreja contra os templários, de que eram usurários, agiotas, autoritários e violentos e que gozavam de privilégios injustos, que às demais Ordens eram negados. E concluiu que a razão de tudo o que estava acontecendo se devia à cobiça de Filipe, o Belo, e à propria negligência dele em não corrigir os rumos da Ordem que presidia. Agora, fizesse ele o que fosse, nada se alteraria.
     Lamentou não ter dado ouvidos aos sinais de perigo. Ficara en-castelado no poder que lhe conferiam os estatutos da Ordem, na in-dependência que lhe dera a Igreja, na proteção que pensava vir do Vaticano. Afogara-se no próprio poder que pensava que tinha. Já não podia salvar os dedos, mas no caso, talvez os anéis fossem mais im-portantes. Por isso aquela decisão de salvaguardar o tesouro do Tem-plo. Com ele a salvo, haveria uma esperança de sobrevivência.
     Deu um suspiro de alívio. O Irmão Saint’Clair com certeza já te-ria posto a salvo o tesouro do Templo. Se não, não haveria tanto empenho dos inquisidores em arrancar dele a informação sobre o paradeiro desse tesouro. O senescais de Filipe não haviam encontra-do um único florim nas preceptorias templárias de França e era isso que o estava irritando. Onde teria ido parar o tesouro dos templários?
     Mas logo voltou às tristes cogitações sobre o destino da Ordem e o seu próprio futuro. Jamais imaginara que o aríete que romperia as muralhas do Templo acabaria sendo a questão religiosa. Nunca dera muita importância a isso. Até porque ele se julgava um católico de-voto. Sempre realizara os sacramentos exigidos pela Igreja e jamais renegara qualquer um deles, nem tampouco qualquer artigo de fé. Os juramentos que fizera ao ingressar na Ordem, os rituais que se obri-gara a praticar, a doutrina que jurara acreditar, era, para ele, uma coisa profissional. Algo assim como o código de ética de um médico, um juramento de soldado profissional, a profissão de fé de um fun-cionário público quando é nomeado para uma função. O juramento, bem como os rituais extravagantes que foram introduzidos na inicia-ção e depois as idéias e as crenças que se disseminavam no interior da organização eram o que se podia chamar de disciplina interna corpus. Faziam parte do corpo doutrinário da Irmandade e vinculavam-se à sua condição de alto dignitário da Ordem. Eram espe-cífica para o seleto grupo do Círculo Interno Superior. Ele não acha-va, na inocência da sua alma de homem simples e devoto, que tudo aquilo fosse contrário à verdadeira fé. Não tinha a mínima ideia do quão importante era para a crença cristã os mistérios da paixão, morte e ressurreição de Jesus. Que eram nesses eventos que estavam apoiados toda a estrutura do Cristianismo. Mas para ele, que era apenas um soldado a serviço daquela fé, qual era a importância de Jesus ter, de fato, morrido na cruz ou não? E se não ressuscitou de verdade, no que isso mudaria a sua fé?
     Um homem precisa ser um Deus para que as pessoas acreditem nele? Ele pensava que não. Aprendera isso com os muçulmanos. Eles não elevaram o seu profeta Maomé à categoria de um Deus. Maomé não era parte de uma família divina, como os cristãos acreditavam que Jesus fosse. Não nascera milagrosamente de uma virgem. Não fizera milagres estupendos. Não se entregara ao carrasco como moe-da de troca de um estranho convênio entre Deus e o Diabo, num processo de salvação que ninguém conseguia explicar a contento.
     Maomé era apenas um profeta. O maior de todos, diziam os mu-çulmanos. Mas ainda assim, fora apenas um homem, que nasceu co-mo todo mundo, viveu como todo mundo, sofreu e gozou como todo mundo e finalmente morreu como todo mundo. Os muçulmanos di-ziam que Deus o arrebatou em carne e sangue para o céu, como os judeus diziam que Jeová havia feito com Enoque e Elias, e os cris-tãos com Jesus, mas isso, se verdade fosse, seria apenas um prêmio por sua conduta de homem justo e mensageiro da palavra divina e não porque fosse um Deus encarnado. E os muçulmanos lutavam por ele com mais ardor até que os cristãos lutavam por Jesus.        
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      Assim também era com os judeus. Moisés era apenas e tão so-mente um profeta. Eles diziam que Deus o escolheu para criar, entre as nações, uma espécie de matriz da humanidade que Ele queria desenvolver na terra. Isso de Molay podia entender. Na teologia ju-daica, Deus era como um criador, um fazendeiro que seleciona entre seus animais uma matriz, cultiva-a, trata-a, aperfeiçoa, para que dela se possa derivar uma raça melhor. Mas não se envolvia pessoalmente com ela. Encarnar então... Isso sim, para os judeus, era uma heresia sem nome. Equiparar Deus com o homem, transformá-lo em ser humano para ser desprezado, maltratado, espezinhado e morto pela sua própria criação... Essa estranha teologia era difícil de entender. Os judeus diziam que Jesus fora condenado e morto por reivindicar os direitos de um rei e as qualidades de um profeta, que como Moisés ou Davi, seria um eleito de Deus. Mas seus discípulos foram mais longe e fizeram dele um Deus. Para os judeus, o Cristianisno incorria na mesma heresia que eles atribuiam aos romanos, que davam foros de divindade ao seu imperador.
De Molay não ignorava o quanto custara, para a Igreja de Roma, a guerra contra os hereges cátaros. E ela não havia exterminado total-mente a heresia, pois, como ele sabia, ideias não se matam senão com outras ideias melhores. E a Igreja Romana, para os espíritos mais esclarecidos daquela parte do país, onde o catarismo floresceu, nunca os convenceu de que tinha uma doutrina melhor do que aquela que os cátaros professavam.
De fato, a doutrina que o Círculo Interno Superior da Ordem do Templo professsava era praticamente a mesma que os cátaros adota-vam. Para os hereges albigenses, Jesus nunca foi “Filho de Deus” nem ressuscitara para subir ao céu em corpo presente. Essa era uma lenda, uma mistificação criada pelos seus discípulos, para vender aos judeus a ideia de que Jesus era, de fato, o Messias da profecia. Foi uma conspiração urdida por seus seguidores, que os mestres da co-munidade essênia, junto com Maria Madalena e José de Arimatéia, os únicos detentores da verdade sobre o que realmente aconteceu com corpo de Jesus, deixaram que acontecesse e se espalhasse por-que interessava aos seus propósitos, que era consolidar a doutrina cristã pelo mundo romano, já que entre os judeus ela estava sendo violentamente reprimida.
Ele sabia que os essênios haviam sido dizimados nas guerras con-tra os romanos nos anos 60-70 da era cristã, e nada sobrara dessa co-munidade de “Filhos da Luz” para contar a história da verdadeira ori-gem do Cristianismo. E que a doutrina de Jesus e a Igreja de Jerusa-lém, que seus discípulos fundaram logo após a sua morte, estava des-tinada a desaparecer, não fosse o surgimento de Saulo de Tarso. 
Para aos discípulos de Jesus, que estavam sendo caçados pelo Sinédrio judeu como criminosos, o surgimento do rabino Saulo de Tarso foi um grande achado. Saulo era um fariseu esperto e ambi-cioso, que ao ser designado pelo Sinédrio judeu para uma missão de prender e silenciar os seguidores do Nazareno, como os líderes reli-giosos judaicos chamavam Jesus, acabou encontrando na história e na doutrina dele o seu próprio caminho para realizar as suas ambições pessoais, de tornar-se, ele mesmo, lider de uma congregação. Como um mero rabino judeu, da odiada seita dos fariseus, ele nunca ficaria famoso. Mas como líder de uma nova religião, que tinha uma ideia e uma proposta capaz de conquistar a população do Império, ele se tornaria conhecido em todo o mundo romano.
Saulo sabia que o mundo romano era um caos espiritual, devido à influência das tantas crenças que eram professadas pelos diversos po-vos que Roma conquistara. Crenças orientais misturadas com antigas tradições egípcias; os mitos e o pensamento grego, desenvolvido pe-los novos filósofos que seguiam as ideias de Platão e Aristóteles; a forte atração que a religiões orientais, o mitraísmo principalmente,, exerciam sobre as tropas romanas. E no meio de tudo isso, o judaís-mo com sua crença monoteísta e elitista, que tanta confusão e repulsa provocara nos outros povos, ao longo da história, e ameaçava, justa-mente naquele momento, levar o povo judeu à extinção.
Saulo, que falava latim e grego, além do aramaico, a língua do seu próprio povo, mudou o seu nome judeu para Paulo, um nome romano. E passou a pregar uma doutrina nova que tranformava o Messias judeu  ̶  um líder carismático que a crença judaica esperava que seu Deus, Jeová, mandasse para libertá-los do cativeiro, como antes Moisés fizera  ̶ em um deus universal, palatável para os in-fluenciáveis habitantes do Império Romano, cujos espíritos vazios e crédulos estavam prontos para serem preenchidos com qualquer ideia que lhes desse um conforto para a vida díficil e sofrida que eles viviam. E assim, o Messias judaico foi fundido com o deus Mitra, da religião persa, com o deus Osíris, dos egípcios e com a idéia de um salvador universal, o Cristo, arquétipo cultuado pelos filósofos gre-gos que professavam as ideias dos estóicos, dos neoplatônicos e dos aristotélicos. Tudo isso, para  os mestres que orientavam os irmãos do Círculo Interno Superior, era visível pela leitura dos Atos dos Apóstolos, pois aquele relato, que narra o nascimento do movimento cristão, em sua primeira parte, mostrava claramente que os apóstolos de Jesus tinham em mente apenas e tão somente a catequização do povo de Israel. Mas a partir de certo momento, o relato muda brus-camente de direção, com a entrada de Saulo de Tarso na história, e o Messias judeu se transforma no Cristo universal.
Dessa miscelânea nasceu o credo chamado Paulino, que a Igreja de  Roma adotou e vendeu para o imperador Constantino, que nele
viu a possibilidade da unificação do então esfacelado império roma-no através de uma crença única.
Esse era o credo que de Molay e os Irmãos do Círculo Interno Superior da Ordem aprenderam. Eles sabiam, por exemplo, que o apóstolo Pedro, embora tivesse sido o principal líder da Igreja de Jerusalém, nunca estivera em Roma. Paulo sim. No entanto, os líde-res da Igreja de Roma haviam se apropriado do fato de Pedro ter assumido a liderrança do movimento cristão, e inventaram que o papa era o sucessor de Pedro no comando da Igreja fundada por Jesus.
A Igreja de Roma, portanto, era uma dolorosa farsa e uma cruel usurpadora da verdadeira doutrina. E os irmãos do Templo, durante mais de um século, haviam vertido o seu sangue lutando por uma grande mentira. Esse fora o motivo do “corte do olmo” realizado em Gisors, há mais de um século atrás, que fizera com que a cúpula da Ordem do Templo se separasse da sua ligação espiritual com a Igreja de Roma, e embora, na sua estrutura, continuasse ligada à ela por razões políticas e diplomáticas, passara a professar uma crença francamente herética, aos olhos da comunidade católica. Então, o que os Templários rejeitavam, ao cuspir na cruz e renegar Cristo, não era a figura de Jesus, propriamente dita, mas sim a Igreja que havia deturpado uma bela doutrina em proveito de um projeto de poder.
 
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     Mesmo na sua ignorância e total indiferença em relação às ques-tões teológicas, de Molay tinha dificuldade para entender por que Deus, sendo soberano, onipotente e único, deixou sua criação se per-der, se macular, se rebelar e depois tivesse que mandar o próprio filho único para salvá-la, à custa de tanto sofrimento e do seu próprio sangue. Deus, sendo onipotente, poderia fazer isso com um sopro da sua boca ou um balançar da sua cabeça. Porque usaria uma estratégia tão complicada? Ele podia entender que os homens se sacrificassem pelos bens que desejavam, pelas coisas que acreditavam. Os homens eram humanos, precisavam realizar ações pessoais para se sentirem vivos, necessários, importantes. Mas Deus precisaria fazer isso tam-bém?
     Se Deus era o poder do bem, porque a humanidade era intrin-sicamente tão má? Talvez a humanidade não fosse realmente criação do Deus bom, mas sim de uma entidade malévola, que para contras-tar o poder de Deus bom, criou o homem. Sim, ele ouvira dizer que Deus criara os anjos, cujas almas eram feitas de pura luz. Mas então outro Deus, o Deus mau, que vive nas trevas, capturou uma centelha dessa luz e encerrou-a na matéria, fazendo o ser humano. Assim o homem era um corpo, feito de matéria, e uma alma, feita de luz. Por isso os antigos mestres ensinavam que só existia salvação para o homem que conseguisse libertar seu espírito da matéria e voltando ao estado de pura luz, pudesse unir-se novamente com Deus. Ninguém poderia fazer isso pelo homem. Fé nenhuma sobre a terra seria capaz de libertar uma alma aprisionada na matéria, mas somente o conhe-cimento desse fato e a prática do desapego consciente e ritual desse estado de prisão espiritual em que se vive, poderia operar esse mila-gre. Destarte, nenhuma Igreja, nenhum profeta, nenhum padre, nem mesmo um Deus encarnado poderia fazer isso pelo homem, mas so-mente ele mesmo com seu conhecimento e seu livre arbítrio.
     Na própria Igreja Católica havia os “Pobres de Deus”, a seita fun-dada pelo santo Francisco de Assis, que praticava o verdadeiro desa-pego aos bens materiais e um extremado amor pela humanidade. Os bispos e as demais ordens monásticas odiavam os franciscanos por-que eles desprezavam as riquezas e as honrarias que os prelados de Roma tanto amavam. Isso era também o que pensava o santo Bernardo de Clairvaux, quando escreveu as regras do Templo. Pelo menos era o que diziam os mestres templários mais antigos, e assim Jacques de Molay acreditava que fosse. Pobreza, castidade, virtude, desapego aos bens materiais, eram a chave para entrar no Reino dos Céus.
     Nem mesmo Jesus, pessoalmente, podia fazer isso por homem nenhum, ensinavam esses mestres. Não era a crença de que Jesus era o Filho de Deus que salvava, mas sim a imitação do seu exemplo. Coisa que os líderes da Igreja de Roma jamais se propuzeram a fazer. Afinal, se fossem mesmo verdadeiras aquelas informações que os altos dignitários da Ordem recebiam na iniciação ao Círculo Interno Superior, que ele também repetia aos iniciados no Capítulo LVIII, Jesus fora um homem comum. Nascera como todo e qualquer ser humano ─ de uma semente masculina lançada em útero feminino ─ sem qualquer intervenção divina. Aquela relíquia, que eles adoravam em seus rituais mais avançados, era a prova inequívoca da humani-dade de Jesus, e da sua morte.    
      Nunca passou pela cabeça do grão-mestre templário que aquela relíquia não fosse autêntica. Que também pudesse ser uma mistifi-cação urdida pelos mestres antigos somente para defender sua adesão à uma crença herética. Ou para justificar a perda da fé, em face das derrotas sofridas na Terra Santa.
       De qualquer forma, para de Molay, o homem Jesus estava tão morto quanto qualquer outro ser humano que nasceu sobre a terra. Ele sabia disso porque tinha a prova inconteste em suas mãos. Mas não podia mostrá-la para mais ninguém, além dos seus irmãos do Círculo Interno Superior, pois toda a fé cristã, construída em cima do mistério da ressurreição, seria destruida. Não, o Templo ainda não estava preparado para substituir a Igreja de Roma. Em um futuro próximo, quem sabe...
      Jesus fora um principe e pelo direito que lhe conferia o sangue da família, a linhagem de Davi e Salomão, tinha o direito a reinvidincar o título de rei de Israel, a nação modelo de Deus. Mas, em tudo isso, só havia mesmo a questão política a justificar a sua reivindicação a um reinado sobre a terra. Foi por isso que ele morrera, sem conseguir realizar a sua missão. O seu projeto de um reino messiânico havia sido abortado pelo poder de Roma e pela inveja dos sacerdotes judeus.
 Implantar esse reino mil anos depois. Realizar esse sonho mes-siânico que Jesus e os seus conterrâneos essênios não conseguiram. Fora essa a ideia dos verdadeiros idealizadores da Ordem do Templo, Geoffroy de Boillon e Bernardo de Clairvaux. O Reino de Jerusalém, fundado pelos cruzados, deveria ser o prometido reino do Messias sobre a terra. Foi com essa motivação que os exércitos francos, sob o comando do Duque de Lorena e com o apoio da própria Igreja ro-mana, marcharam sobre Jerusalém na Primeira Cruzada. Jerusalém seria o centro desse reino messiânico, governado por um rei da linha-gem de Jesus, guardado e defendido pela Milícia de Cristo. Mas esse plano falhara. Os cristãos haviam sido expulsos da Terra Santa e os monges do Templo, cujas vidas foram dadas por esse ideal, chega-ram à conclusão que Jesus foi um homem que viveu e morreu por um belo ideal, mas ainda assim, apenas um ideal, tão humano quanto fo-ra a utópica teocracia de Moisés e o lendário reino de Salomão. Jesus fora tão impotente para salvar os cristãos quanto Maomé o fora para salvar os muculmanos por ocasião do cerco de Jerusalém... Destarte, toda religião, pela qual se morria e se matava eram fundadas sobre bases falsas. A verdadeira religião devia ser a paz, alicerçada sobre a tolerância e o amor...
      Amar os inimigos, como Jesus ensinara. Tolerar a crença dos ju-deus e dos muçulmanos... Os Templários já haviam feito isso ao esta-belecer relações amistosas com os filhos de Israel e os seguidores de Maomé. E isso, agora, estava sendo computado a eles como mais um motivo de opróbrio. Não eram poucos os que acusavam os Templá-rios de terem sido lenientes e entrado em acordo com os inimigos. Comerciavam e se relacionavam com judeus e muçulmanos como se estes fossem cristãos...
     Jacques de Molay sabia que não podia revelar seus pensamentos e opiniões a ninguém que não pertencesse ao seu grau na Ordem. E muito menos fora da Ordem. Eles o perderiam. Quanto à sua própria conduta pessoal, porém, estava tranquilo. Não se lembrava de ter rea-lizado qualquer ato que o envergonhasse. Mantivera os votos de cas-tidade que fizera por ocasião de sua iniciação. Jamais tocara em mu-lher e nem se juntara a qualquer Irmão em atos contra a natureza, co-mo estavam agora sendo imputados aos Templários. Ele mesmo, inclusive, tinha sido acusado de praticar atos de sodomia com novi-ços por ele iniciados. Mas essa era uma grosseira calúnia.
     Por certo que ele não ignorava que em muitos mosteiros e con-ventos esse tipo de comportamento costumava acontecer. A regra do celibato, adotada pela Igreja, colocava muitas pessoas do mesmo sexo para viverem juntas, em regime de claustro. Nem todos tinham fortaleza de alma suficiente para suportar os apelos da carne. Assim, era bem possível que alguns Irmãos tivessem sucumbido à fraqueza.
     Mas ele não. Para ele, a acusação de sodomia era uma difamação imperdoável. Era uma ofensa que devia ser lavada com sangue, em desafio de ordálio. Pena que não lhe fosse permitido desafiar William de Paris, ou mesmo o ministro Nogaret, para o julgamento de Deus, através de um combate singular na liça. De Molay viu as cabeças de seus desafetos rolando na terra, decepadas pela sua espada e sentiu um frêmito de satisfação percorrer todo o seu corpo. Mas foi só um breve momento. Logo voltou às suas tristes cogita-ções, que teimavam em não deixar sua mente em paz.
 
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    Imerso em seus pensamentos, Jacques de Molay nem havia pres-tado atenção na argola de ferro que o carcereiro havia aferrolhado em volta dos seus tornozelos. Era a primeira vez que lhe punham aqueles grilhões. Até aquele momento, desde que fora preso, no dia treze de outubro, seus carceireiros não haviam tomado aquela medida, usual para um prisioneiro que era lançado em uma masmorra. Por isso, o grão-mestre do Templo não havia ainda se dado conta da miserabi-lidade da sua situação. Ainda tinha a esperança de que tudo não passasse de um conflito gerado por uma política mal formulada, o qual seria logo resolvido com os naturais conchavos que se fazem em casos como esse. Se fosse o caso, confessaria as práticas estranhas que se imputavam á Ordem e pediria penitência por isso. O papa o perdoaria e ele seria reintegrado ao seio da Madre Igreja. Isso era praxe nesses casos de desvios doutrinários, onde o pecador  reconhe-cia a sua desorientação, pedia perdão e reingresso na familia católica. Não seria condenado como relapso. Não se tratava de uma questão de fé. Havia ali um objetivo maior que precisava ser atingido. A Ordem, seus planos, seus segredos e sua doutrina precisavam ser preservados. Ainda que a custo de perjúrio e conchavos.
     O rei Filipe desejava a ajuda dos Templários para a realização de suas ambições de líder político no continente. Pois bem, ele poderia tê-la. Queria também o dinheiro do Templo para ajudá-lo a recompor as combalidas finanças do reino. Isso também não era problema. Afinal de contas, tudo isso poderia ainda trazer bons frutos para a Ordem. O papa Clemente V desejava fundir a Ordem do Templo com o Hospital de São João. Pois bem, ele não se oporia mais à essa medida. O Templo era mais poderoso que o Hospital. Com certeza logo o absorveria. Assim, naquela noite, Jacques de Molay foi dor-mir com alguma esperança. Afinal, nem tudo parecia estar perdido.
    Mas acordou no meio da noite porque sonhou com o papa Bo--nifácio VIII. O velho pontífice estava em seu quarto, em seu leito de morte e lhe acenava uma mão de moribundo, como que pedindo socorro. Mas de Molay não lhe estendeu a mão, tomado por um mudo e paralisante torpor. Logo em seguida, Filipe, o Belo, entrou no quarto, puchou a mortalha sobre a cabeça encanecida do velho papa e soltou uma risada de demônio zombeteiro, que lhe congelou o sangue nas veias.
     Jacques de Molay acordou suando por todos os poros. Seus punhos e tornozelos, presos em argolas de ferro, chumbadas à pare-de, estavam sangrando e doiam horrivelmente. Friccionou-os com as mãos compridas e ossudas, fazendo o sangue circular. Um arrepio percorreu todo seu corpo ao recordar o sonho. Não podia deixar de sentir uma pontinha de culpa pela desgraça que se abatera sobre o velho pontífice. Veio-lhe a memória o último diálogo que travara com ele, em fins de 1302, quando o exército cruzado voltara derrotado da Terra Santa, após perder a fortaleza de Rwad, na Síria, abandonando aos sarracenos os últimos domínios cristãos na Terra Santa.
    – A Ordem do Templo, meu filho ─ dissera-lhe o papa Bonifácio VIII─ foi fundada para defender os lugares santos. Agora que os cristãos já não tem quase nenhum domínio na Terra Santa, talvez seja a hora de repensar as obrigações da Irmandade.
     – O fato de termos perdido momentaneamente os nossos terri-tórios na Terra Santa não significa que devemos abandonar a luta para a realização dos nossos ideais – retrucara o grão-mestre, pensando, não nos territórios perdidos no Oriente, mas nos próprios objetivos secretos do Templo e na idéia que tinha na cabeça, de um reino templário na Europa.
    – Pensais então que será possivel recuperar os territórios cristãos no Ultramar?– perguntou, incrédulo, o papa.
– Sim, Santidade. Com a ajuda dos mongóis, seria possivel uma re-conquista ─ disse de Molay, aproveitando uma idéia que lhe havia sido sugerida pelo rei Filipe, o Belo, de uma coalizão com os mon-góis para lutar contra os sarracenos. Para ele, porém, essa era apenas uma manobra diversionista, destinada a manter o interesse do papa no assunto.
     O papa franzira a testa em sinal de desagrado com essa sugestão. – Agora a Cristandade precisa se aliar aos infiéis para realizar os seus objetivos? ─ perguntou, com certa amargura.
    – Não creio que nenhum reino cristão tenha, neste momento, con-dições econômicas e militares para iniciar, sozinho, uma nova cru-zada– respondera De Molay.
     O papa estava pensando na queda de Acre, a última possessão dos cruzados na Terra Santa e na descrição jereminiana que um frade dominicano, testemunha daquele massacre, escrevera naquela opor-tunidade: “Chorai, sobre vossos chefes, que vos abandonaram. Chorai sobre vosso papa e vossos cardeais e prelados e sobre o clero da Igreja. Chorai sobre os vossos reis, príncipes, barões e cavaleiros cristãos, que se chamam a si mesmos de grandes comba-tentes, mas deixaram esta cidade repleta de cristãos sem defesa e abandonaram-na, deixando-a só como um cordeiro no meio de lobos.”
     O padre que escrevera essa lamentação atribuia a derrota dos cristãos à ausência de firmeza moral e ao enfraquecimento da fé, que principalmente os cavaleiros das duas Ordens militares tinham mos-trado nessa ocasião. A queda de Acre e Tripoli foi computada à falta de fervor dos cavaleiros cruzados nos combates e às disputas pelo poder, que os Templários travavam com os Hospitalários.
     Foi então que surgira, dentro da Igreja e fora dela, o movimento para fundir as duas Ordens. Essa proposta tinha sido feita original-mente pelo papa Nicolau IV e sido bem aceita por toda a Cristanda-de, mas a morte daquele pontífice e as manobras dos grãos-mestres do Templo e do Hospital, ciosos de sua independência, haviam torpe-deado esses planos. Principalmente porque o plano previa que com a fusão das duas Ordens, uma nova cruzada fosse financiada pelo tesouro de ambas.
     – Os mongóis odeiam os sarracenos tanto quanto nós– dissera
de Molay ao papa Bonifácio VIII, naquela ocasião. – Se conseguir- mos agora levantar um exército para apoiá-los, com certeza eles nos devolverão Jerusalém e poderemos retomar a fortaleza de Tortosa, para dali iniciarmos uma nova campanha de reconquista da Terra Santa.
     Mas estava-se em dezembro de 1302 e naquele momento, a única preocupação de Bonifácio VIII era a sua briga com Filipe o Belo, rei de França, que havia desdenhado e refutado a sua bula, Unan Sancten, na qual o chefe da Igreja reclamava a “supremacia pontifí-cia sobre todos os reinos da Cristandade, para salvação de todas as almas.”
     O conflito entre o rei Filipe e o papa Bonifácio VIII adiara tam-bém os planos dos Templários, de declarar sua independência e fun-dar um estado independente na Provença. Para o grão-mestre do Templo era interessante que esse conflito se acirrasse e que as tropas do Vaticano e do rei francês acabassem se encontrando em um con-fronto armado. Assim, nenhum dos dois teria força nem condições para enfrentar o Templo. Mas a inesperada fraqueza do sucessor de Bonifácio VIII, o papa Clemente V, e a sua incapacidade para en-frentar Filipe deixara de Molay sem ação.
     Jacques de Molay sentiu que a oportunidade de fundar um reino templário próprio havia passado. O reino dos Irmãos da Pureza, o Ikhvan-es-Safa, governado pelos Cavaleiros Kadosh, sagrados, per-feitos e puros, como Tinturel, Galaad, Lancelot e Percival, heróis dos romances de cavalaria, guardiões do Santo Graal e arquétipos ins-piradores dos próprios Cavaleiros Templários, era mais um sonho adiado. Mas não definitivamente morto.
     Agora, talvez fosse a hora de recuar para salvar a Ordem. Depois, quem sabe...

( Do livro A Irmandade dos Santos Malditos), no prelo