Um ritual em Lugduno

[Continuação de "O lêmur de Lugduno"]

Após um voo sem incidentes, o desembarque no porto de Lugduno se deu com a noite já caída, chuva e frio. Peguei um taxiraeda para o deversório, a poucos quarteirões de distância do rio Arar, e ao preencher minha ficha na recepção, perguntei se o tempo ali era sempre assim tão ruim no inverno.

- Normalmente, é mais seco, dominus - informou o atendente. - Mas deve melhorar pela manhã.

- E você conhece o palacete de Amulius Probus? - Indaguei em tom casual.

- O palacete mal-assombrado? Quem não o conhece em Lugduno! - Replicou ele, muito satisfeito. - Já apareceu até na televisio!

- E o que você acha da história? Acredita mesmo que há um lêmur rondando por lá?

- Pelo menos, foi isso o que o psicopompo Octavianus Decumius afirmou para quem quisesse ouvir...

E atinando que eu também era um psicopompo, perguntou:

- O senhor também vai tentar exorcizar o fantasma?

- O que eu ganho se fizer isso? - Questionei, me fazendo de desinteressado.

- Acredito que um bom dinheiro da herdeira do velho Probus. Por outro lado, se o filho do falecido souber que há outro psicopompo querendo desconsiderar a avaliação de Octavianus Decumius, é possível que o senhor tenha, digamos, problemas para continuar na cidade.

- Do que estamos falando? O filho do velho é da Res Nostra? - Inquiri.

- Não, ele não está com os sicários... mas consta que deve muito dinheiro a eles.

E, sem que eu perguntasse, explicou:

- O cidadão é viciado em corridas de cavalos.

* * *

Depois de jantar vitelinha e linguiça frita no quarto do deversório, comecei a montar o quebra-cabeças. Eu já sabia do envolvimento de Vopiscus Probus com a Res Nostra antes mesmo de sair de Ebora Cerealis; o que o atendente dissera só corroborara minhas informações obtidas via interrete. O palacete não ficava muito distante do deversório, e como eu tinha as chaves e a chuva havia parado, resolvi me arriscar a fazer uma incursão noturna ao local. Troquei o terno por um manto preto com capuz, enfiei uma pistola na cintura e com meus apetrechos de psicopompo numa bolsa a tiracolo, saí pelas ruas vazias e molhadas da cidade gaulesa.

A caminhada não durou mais do que 15 minutos; me vi em frente ao prédio, um belo palacete em estilo neoclássico com dois andares e austeras colunas dóricas. Teoricamente, o edifício deveria estar vazio, já que nem mesmo os servos haviam querido permanecer ali após a aparição do espectro de Amulius Probus. Quando entrei pelo portão dos fundos, faltavam poucos minutos para o término da segunda vigília. Em outras palavras, quase meia-noite.

Acendi uma fax elétrica que levara comigo, para não chamar a atenção acendendo as luzes da casa, e à meia-noite em ponto comecei a caminhar pelo andar térreo, murmurando minhas orações de psicopompo e deixando cair feijões pretos pelo caminho, sem olhar para trás. Finalmente, subi para o andar superior (onde Canutia Proba dissera ter visto o fantasma do tio) e repeti o ritual. Desci para o térreo e sentei-me então num sofá do salão principal. A casa estava em absoluto silêncio, e eu não vira nem ouvira nada de extraordinário.

Sentindo que nada havia a temer, decidi que valeria a pena passar a noite ali e busquei abrigo num dos aposentos da criadagem, próximo a cozinha. Tranquei a porta, deitei-me na cama e, cansado, adormeci quase que imediatamente.

Quando despertei na manhã seguinte, por volta da hora segunda, pude ouvir o barulho do trânsito na rua em frente, mas o palacete continuava silencioso. Abri a porta do quarto e olhei para o caminho que fizera algumas horas antes, durante o ritual.

Os grãos de feijão que eu havia jogado ao chão, tinham desaparecido.

[Continua]

- [29-12-2018]