Um Natal em Wall Ferraz

Certa vez, no Natal em Wall Ferraz, mais precisamente na propriedade rural de uns tios da parte materna, tive uma das conversas mais diferentes que poderia ter. Como de praxe o Natal é celebrando entre entes queridos. O que na realidade é só uma coisa bonita que a Igreja Católica Apostólica Romana criou para anular suas orgias bacanais, mas estar em família é aturar certa falta de escrúpulos até hoje em dia, então a hipocrisia não é bem sucedida nesse caso. Porém, como eu dizia inicialmente, geralmente o Natal é comemorado só e somente só entre parentes cujos sangue e genes são compartilhados. Contudo, naquele Natal havia um intruso, um moço com cheiro forte, olhar tenebroso e ao mesmo tempo atrativo, era como um caçador, uma espécie de vampiro que dizia "não, muito obrigada, a comida estava ótima, não precisa de mais nada" ao invés de, bem, morder quem estava lhe oferecendo alimento. Seu nome era Lucian, suas narinas abriam-se como se estivesse caçando, tinha barba rala e uma postura elegante, e parecia movimentar uma névoa ao seu redor, mas não o frio. Estava meio quente, todos trocavam informações com o dito cujo. Entretanto, eu não conseguia me aproximar, era tão tenebroso que eu poderia chamá-lo de assassino, ladrão e presidente do EUA numa mesma frase intercalando os xigamentos de uma forma eufórica.

Minhas primas mais velhas vinham até mim para comentar sobre como ele era "gato demais", e davam risadinhas entre si, eu as acompanhava naquela interação social de acasalamento, e ainda dizem que somos seres sociais, mesmo com o nosso lado biológico nos lembrando a todo momento para que servimos...

Eu as acompanhava devido ao fato que ocorreu no Natal passado, interagir não é muito a minha praia. Uma dica: se a criatura está sentada no canto mais escuro da casa ou com um livro, ela não quer falar com ninguém e não é falta de educação não querer conversa, É UMA HERESIA, UM PECADO MORTAL ATRAPALHAR A LEITURA OU DESCOBRIR OS ESCONDERIJO SOLITÁRIO DE OUTREM. Como eu disse, interagir não é algo do meu ser, então eu acabei gritando com todo mundo que afirmava "só querer conversar". Mamãe disse que se eu aprontasse mais uma daquelas estava ferrada.

Então eu ri com as minhas primas e até disse que ele era atraente, mas depois fechei a cara, minha mãe não estava me vigiando, então eu poderia me dar a graça dessas escapulidas. Minhas primas mostraram medo e se afastaram.

A noite fora se passando, alguns bocejos, algumas pescadas de cabeça, papai já contava suas piadas. Era umas 3:00. O meu sono estava quase que me derrubando e eu já não conseguia mais entender quase nada daquele romance gótico de Álvares de Azevedo. Quando dois olhos e um sorriso chegaram até mim.

Lucian- Posso saber qual o motivo da reclusão?

Irina- Ler, prefiro ler.

Lucian- Está lendo "Macário"?

Irina- Sim.

Lucian- Moça corajosa, eu mesmo não conseguiria pensar em ler nada sobre o tinhoso numa hora como essa.

Irina- O que há de errado com a hora? Possui 60 minutos como qualquer outra.

Lucian- Não sabe que essa é a hora que os demônios e espíritos malignos estão soltos? Derrubando coisas...

Irina- É, você pode chamar isso de vento. Não acredito nessas coisas, metafísica ou religião é produto de malucos psicodélicos.

Lucian- Então a descrença te faz uma pessoa sem medo?

Irina- Quase que isso, senhor.

Lucian- Vai me dizer que não tem medo nem de cobra?

Irina- Não, medo é algo mental, eu apenas posso me senti ameaçada, mas se uma cobra começar a subir pelas minhas pernas e nós duas não nos sentirmos ameaçadas, não vai acontecer nada.

Lucian- Incrível- e sorriu, como se quisesse que uma cobra subisse por minha pele. Como se sua única função no mundo fosse me desarmar.

Irina- Acho que vou dormir.

Lucian- Espere, menina corajosa, você é de longe a pessoa mais legal dessa festa.

Irina- Está tentando me fazer ficar, aumentando meu ego? Saiba que não careço disso, já tenho uma autoestima bem elevada.

Lucian- Não fica na defensiva comigo, Irina, só estou sendo sincero. Seus olhos me julgam como se eu fosse o responsável por toda desgraça do mundo.

Irina- Por favor, sem drama...

Eu ia me levantar e sair, ele não me deixava confortável.

Lucian- Uma última pergunta, se me permite.

Irina- Fala.

Lucian- Não temes a morte?

Irina- O senhor teme um médico no hospital?

Lucian- Responda com clareza, mocinha.

Irina- Não tente falar com esse ar ameaçador, senhor Lucian. O senhor parecia tão mais inteligente, mas não é capaz de responder sua própria pergunta, é só interpretar, deixe a preguiça para o Diabo.

Ele riu, mas estava na posição de defesa.

Lucian- Não, o médico está curando, isso não passa nenhum medo.

Irina- Exato, o médico está apenas fazendo seu trabalho.

Lucian- Mas o que o medo da morte tem a ver exatamente com isso?

Irina- A morte não é desocupada, e quem não é desocupado está trabalhando. Então por que temer a morte, se é apenas o trabalho dela sendo feito?

Lucian- Curioso...

Irina- Sabe senhor Lucian, eu tenho mais medo da vida. Ela chega como quem não quer nada, bagunça, bate, abraça, parece até que os níveis de serotonina dela são mais confusos que meu ciclo mentrual. Ela causa guerras, descobertas científicas embasadas na crueldade.

A vida, essa mesma, é perigosa, ela consegue fazer duas pessoas se amarem e dias depois uma está odiando a outra. Dizem que ela é dura, dizem que para alguns ela é fácil. A vida é uma adolescente no ápice da sua puberdade, seus hormônios estão a mil e a morte? A velha morte é a cuidadora da vida.

A morte é só uma subalterna da vida, aquela sempre limpa a sujeira que a nossa adolescente vital faz. Mas todos culpam a morte, pois só avistam ela limpando tudo, ela apenas é obediente. Cumpre com seus horários. E se a Reforma da Providência for aprovada, ela não vai mesmo se aposentar. A morte não me causa medo, senhor Lucian.

Lucian- Então é por isso que vive enclausurada no seu planeta solitário?

Eu olhei para o relógio, eram 3:33 da manhã.

Ele riu, como se tivesse me desarmado, porém eu ri de volta. Era como uma petulância em dobro. Uma dança.

Ergui minha taça de vinho e disse: asteróide 327.

Ele não entendeu, deu-me boa noite, desejou-me um Feliz Natal e foi. De repente, a névoa também, o fogo crepitava e o frio tomou de conta da noite, mas o cheiro forte, como se fosse enxofre encoberto por 1 litro de perfume amadeirado até hoje está nas minhas narinas, narinas de caça.