A Profecia de Agnes, a Feiticeira de Sal

Julho, 1920

- Querido, você pegou seus sapatos?

- Sim, tia.

- Tem certeza? Não quero pés molhados em cima do tapete quando chegarmos lá...

- Estão aqui, olhe

- Tudo bem. Já vamos partir.

Era fim de verão quando, em uma viagem cotidiana, Elizabeth e seu sobrinho resolveram visitar uma cidade distante e pacata no interior de Brickerville. Quase nada se sabia desse lugar e o pouco que se ouvia falar, logo era abafado por murmuros obscuros sobre as forças do mal que agiam ali. É claro que nada disso foi impedimento para que a tia do pequeno Charles passasse algumas semanas, até mesmo porque nunca acreditou em coisas de outro mundo.

Após quase quatro horas de viagem, conseguiram chegar ao destino. A casa não aparentava nada de diferente. Deixada de herança por uma avó falecida, Elizabeth decidiu que poderia passar mais que algumas semanas ali. Bastava olhar a casa enfeitada de flores para sentir vivamente a presença dela, com seus vasinhos de plantas, as cortinas lilases e o tapete dizendo "Você não é bem vindo, a menos que traga cigarros".

- Trouxe seus cigarros, mas você já não pode mais acendê-los. Sinto tanto sua falta... - falou baixinho

- Tia, onde coloco as malas?

- Ah, sim... No segundo quarto, aquele com a porta azul

- Você vai ficar no preto?

- Sim, vou, você sabe que amo essa cor

Assim que entrou, Elizabeth colocou seus objetos nos devidos lugares. O quarto de sua avó ainda continha velas queimadas e livros marcados. Na escrivaninha, encontrou alguns escritos de que nada entendia. Devia ser algum código secreto, pensou. A cama ainda estava em bom estado e o quarto era carregado de pinturas estranhas. Quando chegou na cozinha, encheu os potes de chocolate e chá. Como o dia estava ficando frio, resolveu fazer um bule cheio de chá de canela, assim "esquentaria rapidamente seus ossos", como sua avó tanto falava. Cansados da viagem, jantaram e foram dormir. Resolveu que desfaria as malas no outro dia e também observaria ao redor da casa.

Era de manhã quando ouviu pedras batendo na janela...

- Será possível que nem aqui esses meninos me deixam em paz?!

Foi até a porta para observar. Não havia ninguém.

O barulho voltou e ela saiu para ver melhor, mas o nevoeiro ao redor cegava sua visão. Achou ter ouvido uma voz falando "Volte de onde veio", mas pensou ser um mero devaneio, já que mal acordara. Voltou para a cama a passos curtos. Não ouviu mais nada. Foi um sonho.

- Bom dia! Dormiu bem?

- Bom dia! Não sei dizer, tia. Estou sentindo umas dores no pescoço.

- Ah, deve ter dormido de mal jeito. Senti isso muitas vezes. Gostou daqui?

- Sinto falta dos banhos quentes

- Passei tanto tempo aqui na infância, que nem reparei na falta de ducha. Vou providenciar isto. Agnes, minha avó, não gostava.

Lembrou das exatas palavras da avó "banho gelado desperta minha alma e a afasta do Inferno", mas não diria isso a Charles, um garoto de oito anos.

- Bem, eu fiz panquecas pra nós

- Oba! Oba!

- Enquanto você termina, vou dar uma olhada no quintal. Vi que tem muitas árvores por aqui

- Parece coisa daqueles filmes de terror

- Não exagere. Basta varrer umas folhas e tá tudo certo. Fique aqui, eu já volto.

- Tudo bem

Elizabeth andou por todo o caminho que percorrera na vinda. Sim, havia muitas árvores e folhas caídas, o que deixava o lugar com um aspecto não tão agradável. Andou mais e achou uma porta que dava de entrada a uma espécie de porão feito de madeira. Estava trancado e nas suas formas havia desenhos estranhos que nunca tinha visto.

É bem verdade que Agnes era estranha, mas isso a havia deixado assustada. Não parecia algo bom, o que quer que estivesse ali dentro. Não tocou mais nele. Em vez disso, cobriu com um pano para que Charles não se aproximasse. Se quisesse descobrir o que tinha ali, devia voltar à noite, quando não fosse perigoso. E assim fez.

Já passava das onze horas quando voltou ao local. Estava do mesmo jeito que tinha deixado. Pensou que a chave poderia estar escondida em algum lugar, pois sua avó adorava charadas.

- Tudo bem, se eu fosse a chave de uma velha feiticeira, onde estaria?, brincou aos risos

Nada dava pistas. Era possível que estivesse em alguma árvore ou mesmo enterrada com o cadáver de sua avó. Não tinha ideia. Resolveu procurar entre frestas. Achou o que poderia ser uma chave... moldada em madeira e aço. "É bem coisa dela mesmo". Forçou a fechadura. Conseguiu abrir. Parecia fácil demais, como se aquilo já estivesse calculado.

Quando entrou, não pode acreditar no que estava vendo. O espaço era enorme e coberto por letras desenhadas a mão, que mais pareciam um ritual. Não era possível. Não podia ser. Quando brincou sobre a feitiçaria, não queria que fosse real. Parecia muito pior. Algo que estava além deste mundo.

- "Mueelle cujmb manok" o que isto quer dizer?

Ouviu barulhos por entre as árvores, algo como passos arrastados e pesados.

- O que foi que eu fiz?

Saiu correndo para dentro da casa. Procurou por Charles mas não o encontrou.

- Charles! Charles! Onde você está? Fale comigo!

Não havia sons. Até mesmo o vento estava parado. Ouviu uma velha risada dizendo "eu disse para ir embora, criança". E chorou. Era seu fim, pensou. De repente, ouviu um terrível barulho.

- Charles!

À medida que corria, via respingos de sangue no chão. Não havia mais ninguém além deles ali. Era ele. O caminho ensanguentado não levava ao porão, mas a uma das árvores da floresta. Ao seu lado, havia uma mesa de pedra, exatamente do tamanho do corpo do menino que ali estava. Em seu pescoço, marcas de mãos se faziam presente. Ele se foi. Para sempre se foi. Elizabeth só pôde chorar.

Naquele momento, descobriu que Agnes nunca fora sua avó de verdade. Ela foi, na verdade, criada por uma velha do mato. Algo no corpo de Charles estava falando por ele, contando toda a verdade. Só então descobriu que seus pais e sua irmã foram misteriosamente assassinados. A suposta avó que a criou, dizendo ser uma antiga e distante parente a quem tinham abandonado, era uma feiticeira de sal vinda das profundezas do mar. Ficou ali, olhando para o menino que nada tinha feito para merecer aquilo...

- Me perdoe! Me perdoe! Eu sinto muito, querido... Por que eu? Por quê?

Quando tentou correr para longe do local, sentiu suas pernas enfraquecendo e sendo puxadas. Foi arrastada até o porão aos gritos de desespero. Não havia ninguém, apenas vozes vindas do além aclamando a mesma frase que havia proferido:

- Mueelle cujmb manok

- Mueelle cujmb manok

- Mueelle cujmb manok

A profecia estava feita e não havia mais volta. Elizabeth não existia mais. Em vez disso, Agnes roubara seus corpos jovens e seus tempos de vida.

- Enfim de volta à vida! Desculpe, querida Elizabeth, você não deu o devido valor a sua vida e eu tinha mais negócios a tratar em vida que em morte. Nem os demônios podem me aprisionar de novo. Foi um erro envelhecer demais. HAHAHAHAHAHAHA

E que bela risada eu tenho agora. Viva a juventude, a beleza e a poesia! Sou eu quem agora desafia as leis do universo! Mas, primeiro, deixe-me beber um chá de canela e fumar meus cigarrinhos vindos de New York...

Hillary Martins
Enviado por Hillary Martins em 12/09/2019
Reeditado em 12/09/2019
Código do texto: T6743522
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.