Matos Têm Olhos

        Por esse tempo, Mata Roma ainda era um povoado pertencente ao município maranhense de Chapadinha. Um aglomerado de casas rústicas,  com ruas desalinhadas, sem atrativos, comércio rudimentar,  contudo existia um barzinho onde todos se encontravam e onde todos se conheciam.

        Entre os moradores do lugar, dois se destacavam pela alegria contagiante. Senhores casados e com filhos rapazes, famílias unidas. Conservavam uma amizade desde os tempos de meninos. Eram como se costuma dizer, carne e unha, corda e balde, tampa e tabaqueiro. Nas horas de folgas não se deslargavam. Dizia-se que se um fosse pra guerra o outro iria mesmo sem saber atirar, pois eram amigos de gagar juntos. 

        O maior e mais desastrado acontecimento do povoado acorreu quando um dia, numa discussão sem pé nem cabeça, ambos se atracaram aos tapas, pontapés e rabos de arraias dentro do bar. A muito custo, as pessoas conseguiram apartá-los e o mais tenebroso ainda estava por vir, quando ambos se juraram de morte. 

        Como eram amigos de todos, todos se empenharam numa missão impossível: evitar que os dois se encontrassem a sós, isso virou dogma. Os dois passaram a ser vigiados até por satélite, mas…

        Mas o diabo dificilmente cochila e quando cochila é de um olho só. Um certo domingo de um março qualquer, um desses agora inimigos acordou cedo e foi a um povoado vizinho, que era ligado a Mata Roma apenas por uma imensa vereda que servia de aceiro a uma cerca de arame farpado linheira como meio-fio de igreja. Era uma distância de pouco mais de um quilômetro, em terreno de chapada, mata baixa, rala e mais ou menos no meio desse percurso havia um espaço limpo como uma quadra de esportes. O cara ficou lá  na vila até as 10 horas da manhã. 

        Pois bem, *Eu retornava para Mata Roma  e ao passar por esse largo já vinha com uma dor de barriga daquelas. Do lado oposto à cerca de arame havia um pequeno morro, lugar apropriado para descarregar as dores, pela vista panorâmica que oferecia… foi nesse espaço limpo onde os dois ex-amigos, por arte sabe se lá de quem se deram de cara, longe de todos, sem testemunhas e cada um puxando seu facão de fazer barbas. 

        Eu que já estava se borrando por um motivo, passou a se borrar de medo e vendo a desgraça de camarote. 

        O que ocorreu ali foi indescritível. Dois monstros irados se digladiando, espumando pelas bocas e poros como dois possessos. As armas brandiam a desprender centelhas. Seria impossível dizer-se que um dia foram amigos. Golpearam-se até que sem mais forças, caíram, um morto, o outro semiânime. 

        Eu que já tinha terminado suas necessidades primárias e apavorado sem coragem de descer, viu que se aproximava rapidamente uma pessoa a cavalo. Procurou esconder-se ainda mais. Era o filho do morto. Diante daquele teatro de horrores o rapaz entendeu tudo. Desceu do cavalo, pegou o facão do pai e com um só golpe, sem a mínima comiseração abateu o que ainda tentava levantar-se, depois lentamente colocou a arma na mão do pai. Feito isso, montou em seu cavalo e com uma palha apagou seus próprios rastros do chão, retornando ao povoado por dentro do mato e comportou-se como se de nada soubesse. 

        Como era de se esperar, o clamor no povoado não poderia ter sido pior. O duplo crime ficou resolvido pelas evidências. Sem provas testemunhais declaradas e com uma investigação débil, prevaleceu o quê em Direito chama-se em bom Latim de "Iter criminis", ou seja, o estudo dos fatos ocorridos antes do delito, até a consumação. 

        Eu soube desse fato em 1982 em Buriticupu e possivelmente esse assunto já havia juridicamente caducado. 

        Eu que não sou eu me contou e eu conto, certo de que paredes podem não ter ouvidos, contudo matos têm olhos. 

*EU era o apelido de Zé de Margarida. Acontece que sempre que alguém gritava: Zé de Margarida! Ele repondia: euuu? 

Pronto, não deu outra, mudaram-lhe o epíteto. 

Um Piauiense Armengador de Versos
Enviado por Um Piauiense Armengador de Versos em 29/05/2020
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