O homem da caverna

Mariana sempre ouvira que naquele enorme morro, atrás da casa de seus avós maternos no interior do município de Cantão, tinha uma caverna habitada por um ermitão.

Ela era muito pequena e já desenhava na sua imaginação as feições do tal homem. Era baixo, barba branca, cabelos desgrenhados, poucos dentes na boca, corcunda e com brilho no olhar. Na sua imaginação o homem comunicava-se pelo olhar e, embora fosse muito feio e maltrapilho, namorava o mundo com os olhos. Esse detalhe ela captou de uma conversa com seu avô, que tinha um enorme comércio na localidade e contava que, de tempos em tempos, o homem aparecia no final da tarde, quando já não tinha mais qualquer empregado no comércio e, com os olhos fixos nos dele, falava com o olhar. O seu avô colocava dentro de um saco a quantidade de mantimentos básicos que ele também imaginava que o homem precisaria por um bom tempo, e sempre recebia como pagamento um lindo cinzeiro entalhado em madeira. Não ousava questionar coisa alguma. Era como se fosse um trato de homem para homem.

E com essas informações Mariana trabalhou a história do ermitão por anos. Quando começou a estudar disseminava-a na escola e sempre virava o centro das atenções, tamanha a curiosidade dos colegas. E a cada história contada mais detalhes ela incluia, pois a sua imaginação foi-se abrindo como um mar, sem limites.

Aos poucos o homem, com tantas histórias e curiosidades passou a ser chamado de “O Homem da Caverna”, um homem temido, mudo, mas que deveria ter armas primitivas e poderosas para afastar qualquer pessoa que por lá chegasse. Mariana chegava a imaginar a mais poderosa delas: algo do tipo a que o Fred Flinstones carregava no tempo da idade da pedra.

E nem sequer as excursões de Mariana no grupo de escoteiros (ela era bandeirante) ousaram subir o morro para tentar encontrar o Homem da Caverna.

Quando ela tinha 20 anos o seu avô faleceu e, no seu comércio foram encontrados mais de cinquenta cinzeiros entalhados maravilhosamente na madeira, guardados em uma prateleira imensa de um armário chaveado. Sem saber o que fazer com eles sua avó, sem dar o significado que Mariana daria, colocou-os à disposição de qualquer freguês que o almejassem. Naquele tempo não se sabia se o homem ainda existia.

Mariana, quando soube da doação, correu para a casa da avó e arrebanhou os últimos cinco exemplares, todos eles com figuras diferentes entalhadas, verdadeiras obras primas.

Passaram-se os anos, Mariana mudou-se para a capital para continuar os estudos e lá, já com trinta anos, engajou-se em um grupo de trilheiros. Eis que, no cronograma daquele ano de 1972 ela encontrou em um final de semana de agosto, uma trilha programada para o morro do Homem da Caverna. Não teve dúvidas: inscreveu-se no ato e o seu coração já começou a bater, pensando que fora preciso tantos anos para que ela, a mais curiosa e inventiva de todas as criaturas naquela localidade, tivesse a oportunidade de conhecer a caverna. Sim, a caverna, pois o ermitão já deveria ter partido.

O final de semana chegou e certa nostalgia tomou conta dela. A casa dos avós ainda estava lá, o velho comércio fechado e o mesmo banco de cimento em frente aguardando a família para uma prosa. Mas a família já estava espalhada e só restaram lembranças.

Na subida do morro, com todos os equipamentos de segurança necessários para uma trilha, Mariana tremia a mão na pegada do cajado. Com o coração aos pulos e ouvindo as histórias relatadas pelo guia, nada semelhantes às histórias que ela disseminara na sua infância, adentrou à enorme caverna. Um cheiro de fumaça invadiu o ambiente e, ao final foi avistada uma pequena fogueira já em brasa, possivelmente feita para aquecer aquele terrível dia de inverno.

Onde estaria o Homem da Caverna? Seria outro homem? Ele formara família alí? E os cinzeiros? Aonde eram feitos?

Curiosidade sanada Mariana retornou para sua casa sem muito o que pensar, a não ser a oportunidade que tivera de reviver tantas boas lembranças.

Na mesma noite, recebeu a visita de sua prima, artista plástica com carreira em ascensão. Ela, fumante inveterada, deparou-se com um lindo cinzeiro entalhado, que adornava uma mesa auxiliar. Questionou de quem Mariana o teria adquirido ou ganho, já que era visível a riqueza de detalhes. Chegou a comentar que considerava aquele trabalho ímpar, tipo peça exclusiva, concebida por algum artista plástico conhecido e que conseguia visualizar uma imagem cifrada.

Em silêncio, Mariana não respondeu e, cansada, serviu o jantar, um tanto dispersa. Na verdade, a partir das impressões da prima, tinha certeza de que, quando findasse o jantar, correria para o armário para recolher os outros quatro cinzeiros e tentar entendê-los como um todo. O que as imagens poderiam decifrar?

Escrito para a Oficina "Provocações - módulo 05 - Pragmatha Editora

Rosalva
Enviado por Rosalva em 13/07/2021
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