A punição

A Punição

Rafael sempre soube que era ladrão. Percebeu isso assim que adquiriu consciência do que era ser ladrão. Só que ele também tinha consciência de que não era um ladrão comum. Ladrões comuns roubam para vender, para ter mais, para se enriquecer. Ele não. Ele só roubava porque tinha prazer. Chamam isso de cleptomania, geralmente descrita como um transtorno de controle de impulsos que resulta em um impulso irresistível de roubar. Existem teorias que sugerem que mudanças no cérebro podem ser a raiz da cleptomania. Rafael achava que não se enquadrava em nenhum motivo, simplesmente ele era assim. Já pequeno, quando sua mãe visitava parentes ou amigas com filhos da idade dele, ele acabava levando para casa escondido um brinquedo qualquer. Quando sua mãe descobria, se obrigava a levar de volta, geralmente com uma mentira do tipo: “Desculpa, ele tem um igualzinho” ou “Acho que ele se confundiu”. Seus irmãos, que nasceram depois dele, não eram assim, nenhum dos três. Pelo contrário, todos cumpriam os requisitos estipulados pela sociedade como sendo normal.

Mas à medida que o tempo foi passando ela teve que fazer muitas dessas visitas o que acabou resultando em inimizades e olhares desconfiados por parte dos amigos e parentes. Sempre que um episódio desses acontecia ela chamava Rafael e conversava com ele, explicando que aquilo era errado, mostrando as consequências de atos como aquele, deixando claro que não aprovava roubos de espécie nenhuma e não toleraria mais, haveria castigos caso acontecesse de novo.

Diante disso, Rafael não teve outra alternativa, a não ser mudar seu “modus operandi” por assim dizer. Passou a ter mais cuidado, planejar mais, roubar coisas que ninguém notaria de imediato, porque no fundo ele sabia, não era para ter as coisas que ele roubava, isso ele poderia pedir para sua mãe que ela compraria. Não, era pelo prazer de subtrair algo sem que ninguém percebesse, ter o poder sobre aquele objeto e consequentemente sobre a pessoa incauta que sofreu o roubo. Foi seguindo nessa linha de pensamento e ação que Rafael roubou pela primeira vez um objeto que nunca deveria ter roubado, um objeto que causaria muitas dores e arrependimento.

A vida de Rafael não foi muito diferente de outros jovens de sua idade. Cresceu estudando, aos 22 anos já era um jovem alto e forte, admirado pelas mulheres por sua gentileza, tática utilizada para distrair na hora de roubar, e por seus olhos azuis destacados pelos cabelos negros herdados de sua mãe. Na escola algumas vezes foi chamado a diretoria por roubos inexplicáveis que ele atribuía a distração quando questionado. A resposta já treinada era sempre a mesma: “Nossa, nem percebi, peguei por engano, mil perdões”.

Apesar desses revezes contornados com muita astúcia e mentiras, ele conseguiu se formar com notas bem altas, porque uma coisa ele aprendeu com a mãe, que para ser alguém nessa vida tinha que estudar muito. Outra coisa ele aprendeu por conta própria, a mentira tinha que ser curta e rápida, não poderia ser muito detalhada porque isso com certeza o denunciaria. Enquanto cursava faculdade de medicina trabalhava como paramédico atendendo nas emergências junto com os bombeiros. Foi numa emergência que ele pegou o objeto que nunca deveria ter tocado.

A casa era simples, pertencia a uma velha senhora que morava sozinha. O chamado dizia que uma vizinha ligou preocupada dizendo que já havia algum tempo não avistava Dona Ofélia, como era chamada a velha senhora que morava naquela casa. Segundo a vizinha, dona Ofélia sempre molhava as plantas do jardim da frente de sua casa. Ela notou que as plantas estavam morrendo sem água já havia alguns dias. Disse que chamou várias vezes e ninguém respondeu.

Quando os bombeiros chegaram lá, a tarde já estava acabando, a noite se aproximava e o relógio de Rafael marcava 17:50h. Depois de baterem insistentemente na porta da frente, resolveram invadir. Ao entrar, se depararam, com o corpo já sem vida de Dona Ofélia estendido na cama. Ela teve o cuidado de se arrumar com seu melhor vestido, acender várias velas espalhadas pelo quarto, que nessas alturas já estavam totalmente derretidas, deitar-se, e esperar pela morte.

A única coisa inusitada naquela cena macabra, era o livro que ela mantinha em suas mãos segurando como se fosse um crucifixo. Quando Rafael colocou seus olhos naquele livro suas mãos tremeram de prazer, seu coração palpitou como uma criança diante de uma enorme caixa de presente, sua mente começou a girar rápida na busca de uma forma de obter aquele objeto.

Enquanto pensava ia checando a pulsação da senhora, confirmando sua morte, enquanto os outros bombeiros checavam o local. Segundo a vizinha, Dona Ofélia não tinha parentes. Depois disso aguardariam a perícia que acionaria o Centro de Comunicações da Polícia Civil, o Serviço de Verificação de Óbitos ou o IML que faria a necropsia para apurar a causa da morte e emitir a Declaração de Óbito.

Um monte de gente estaria naquele lugar e ficaria muito difícil roubar o livro. Sendo assim, quando os bombeiros se distraíram por um minuto, ele botou a mão no livro e o puxou. Logo percebeu que devido a rigidez cadavérica aquela não seria uma tarefa fácil, mas nada na vida de ladrão dele tinha sido fácil. Era só mais um desafio que tornava o roubo bem mais atraente. Tentou mais uma vez, e dessa vez, o livro se soltou um pouco mais deixando a mostra um bilhete que havia por baixo dele. Rafael puxou o bilhete, que saiu fácil pois não estava preso a nada, abriu rapidamente e leu a frase que deixaria qualquer outra pessoa arrepiada, mas não Rafael. Ele nunca acreditou em profecias, magias, maldições, ou coisas desse gênero. A frase escrita com letra cursiva e delicada dizia apenas: “Queime este livro, ele é maldito!”.

Rafael colocou o bilhete dentro do bolso e puxou o livro, desta vez forçando os dedos do cadáver a se abrirem. Arrancou com um puxão e conseguiu escondê-lo dentro da jaqueta, segundos antes de um agente do IML assomar a porta e pedir que ele saísse. Gotas de suor escorreram por sua testa, enxugou-as rapidamente e se dirigiu para o carro dos bombeiros que já o aguardavam impacientes. Quando entrou foi alvo de todo tipo de piada:

− Você demorou Rafael, se apaixonou pela velhinha?

− Estava pedindo a velhinha em casamento?

Risadas ecoaram pelo interior do caminhão.

Rafael deu seu sorriso mais charmoso e explicou que estava fazendo uma oração por ela já que ela lembrava muito sua avó falecida. Diante dessa mentira tão inocente os outros ficaram envergonhados e lhe pediram desculpas.

A noite em sua casa, onde morava sozinho, tirou o livro de dentro da jaqueta e se pôs a olhá-lo. O livro tinha um aspecto comum, capa dura de cor preta, páginas de folhas finas, iguais a de qualquer livro. Ao abri-las, a primeira coisa que notou foi o nome na primeira página escrito em vermelho: “Ofélia Anninka Duarte”. Achou o nome do meio estranho e depois de pesquisar descobriu que era polonês e significava Ana. Talvez para homenagear algum parente, mãe, avó.

Outra coisa que notou já em seguida e que mexeu um pouquinho com ele foi que depois disso não havia mais nada, todas as páginas estavam em branco. Achou aquilo um tanto estranho, mas para um roubo não significava nada, era só mais um objeto roubado que ele guardaria em seu “baú de recordações”, como ele chamava, e ficaria lá juntando poeira junto com todos os pequenos e grandes objetos que ele roubou durante a vida. De vez em quando ele separava alguns e colocava no forro de sua casa, para aliviar um pouco o baú, porque o risco de ser pego era uma de suas maiores preocupações.

Nunca roubou dinheiro, isso ele não precisava. Além do mais, também seria mais fácil ser pego assim. Tomou um banho, comeu alguma coisa, viu TV, adormeceu no sofá. Acordou com um pesadelo onde Dona Ofélia com olhos arregalados, dentes podres, o segurava pelos braços gritando:

− Queime o livro!!!

Ficou feliz de ter acordado e constatar que nada mudara em sua vida. O livro continuava lá sobre a mesinha de centro onde ele o havia deixado na noite anterior. Sua casa ainda era a mesma. Foi tomar uma chuveirada, um café com leite e preparou-se para o dia de trabalho. Enquanto terminava esse ritual diário, o telefone tocou. Do outro lado da linha sua mãe estava em prantos, sua voz entrecortada de soluços lhe dizia que seu irmão Jonas havia morrido. Rafael correu para lá e descobriu que seu irmão Jonas de apenas 20 anos havia sofrido um acidente de carro na noite anterior às 18:30h. Logo após ele ter se apoderado do livro. Coincidência, pensou ele.

A morte de seu irmão foi um baque, precisou de muita força para enfrentar, mas precisou de mais força ainda quando ao voltar para casa e abrir o livro, lá estava escrito o nome de seu irmão em letra vermelha. Aquilo começava a parecer muito esquisito. Tentou pensar em explicações racionais, concluindo que talvez ele mesmo tivesse escrito durante um ataque de sonambulismo, coisa que já havia acontecido com ele antes.

Alguns dias se passaram, ele já estava quase esquecendo daquela esquisitice quando recebeu a notícia de que seu outro irmão, Gabriel, se atirou de uma ponte. E, novamente, ao abrir o livro, lá estava o nome de seu irmão escrito em vermelho.

Bom, agora era oficial, ele não podia mais ignorar isso. Não havia explicações, racionais ou não, tudo levava a crer que aquele livro era mesmo maldito. Depois dessa constatação terrível ele teria que queimá-lo.

Pegou o livro, fósforos, um pouco de álcool, foi até o fundo do quintal, jogou o livro no chão, e quando ia jogar álcool por cima, sentiu uma dor enorme. Não física. Não, a dor que sentia era a dor da perda, a dor de saber que um objeto roubado valioso para ele seria incinerado. Recuou pensando que nada disso deveria estar acontecendo, era só mais um roubo, aquela história de livro maldito era coisa de maluco, ou maluca, Dona Ofélia, aquela velhinha deveria ser maluca. Seu irmão Gabriel era depressivo, todo mundo sabia disso, Jonas sofreu um acidente de carro, claramente nada disso tinha a ver com o livro, a não ser o fato de os nomes terem aparecido escritos lá em tinta vermelha, o que poderia ter sido ele, de novo sonâmbulo, ou seja, ele mesmo estava se boicotando numa mistura de culpa e medo. Guardou tudo de volta e tentou não pensar mais nisso.

Já fazia um mês que tudo corria normalmente e ele já estava de volta aos pequenos roubos: uma caneta de seu companheiro de trabalho, uma bijuteria da barraca do hippie na praça, um garfo do restaurante... até que numa noite tranquila ao abrir o livro, que agora por curiosidade ele abria sempre, surgiu diante de seus olhos uma coisa nova. Tinha uma letra, apenas uma letra: J, sim um jota, nada mais. Veio logo a mente várias coisas escritas com J: Jesus, Jaboti, jabuticaba, jaborandi, Jeep, Jonas, jamais, jejum...enfim, uma infinidade de palavras que se poderia escrever com jota. Depois de pensar e pensar não encontrou nenhuma pista. Cansado, foi dormir.

Dessa vez o pesadelo foi pior, não só dona Ofélia vinha gritar com ele pedindo para queimar o livro, mas seus dois irmãos seguiam o coro macabro. Acordou suando, coração disparado, só se recuperou depois de lavar o rosto. Sua imagem refletida no espelho mostrava sinais de cansaço, resultado dos pesadelos. Olheiras fundas davam-lhe um aspecto quase cadavérico.

Preparou um café bem forte, acrescentou pão, presunto e queijo, tudo para recuperar as energias perdidas. Pegou sua mochila se preparando para sair para o trabalho quando lhe veio um nome na cabeça, Jessica. Sim, o nome de sua irmã caçula era Jessica. Ele havia se esquecido completamente desse detalhe. Jessica tinha 15 anos. De repente um medo apavorante tomou conta dele. Seria Jessica a próxima? Não, não podia ser, aquilo já tinha ido longe demais, impossível, isso não está acontecendo comigo. Tudo isso lhe passou pela cabeça. Sentia-se como alguém que recebe uma notícia ruim e passa pelas cinco fases do luto: Negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Talvez ele já tivesse passado por todas elas, talvez tivesse pulado alguma, sim, depressão ele pulou, estava na hora da barganha. Mas, barganhar ou negociar, o que dava no mesmo, com quem? Quem comandava aquele livro? Quem teria poder sobre a vida e a morte? Quem seria cruel o bastante para invadir assim a vida de uma pessoa e lhe impingir todo tipo de sofrimento? Um deus? O deus dos cristãos costuma ser descrito como todo amor. O deus dos judeus também, assim como o dos muçulmanos. Não, isso não fazia o menor sentido. A não ser.., a não ser que não fossem deuses, mas sim uma coisa ruim, um anjo, um anjo do mal, Lúcifer, sim isso explicaria tudo.

Analisando o que se dizia de Lúcifer, o que ele fizera de errado mesmo? Incitou uma mulher pelada comer uma maçã? Gostou da brincadeira e começou a incitar todo mundo a fazer coisas ruins? Para ganhar o que? Almas que ele teria que passar o resto da eternidade atormentando? Uma trabalheira danada só pelo prazer do poder exercido sobre elas? Mas até agora ele era o candidato mais provável, seria ele ou um de seus comparsas designados para o trabalho sujo dele, escolhidos a dedo para as tarefas mais sórdidas, cochichar no ouvido das pessoas coisas ruins como: roube aquele objeto, engane aquela moça, bata nos seus pais, mate seu amigo, estupre aquela criança, desobedeça às leis, exploda aquele avião, levante falso testemunho. Havia uma infinidade de coisas e atitudes que as pessoas atribuíam aos demônios e ao próprio satanás. Mas, um livro? Um livro simples? Um livro que determina a morte das pessoas? Principalmente daquelas que estão ao seu redor? Aquelas que você ama? Teve que sentar-se.

Toda aquela história o deixou fatigado, sem vontade de ir trabalhar. Telefonou para os bombeiros e disse que não estava passando bem, iria ficar em casa e recuperar as energias, uma virose, devia ser isso, boa desculpa para quem não sabe o que tem. Ali sentado no sofá pensando em Jessica, lembrando de como ela era bonita, doce, meiga, muito inteligente e com certeza não merecedora daquele destino que parecia cada vez mais certo ao olhar para aquele “J”. Adormeceu. Nos sonhos foi visitado por uma mulher, uma senhora envolta em uma névoa, trajando uma túnica negra, carregando nas mãos uma foice, no lugar de olhos, órbitas vazias e escuras, que lhe disse:

− Você roubou meu livro, e sua punição será a de ver todos os seus entes queridos morrerem. Você ficará por último, quando enfim virei buscá-lo. Quando você roubava das pessoas, nunca pensou nas consequências que isso acarretaria, nunca viu que inocentes foram punidos em seu lugar, pessoas perderam empregos, relacionamentos foram desfeitos, pessoas foram humilhadas e se mataram, tudo por causa de seu desejo de poder, de ter, de controlar. Deixei de propósito o livro nas mãos de Dona Ofélia quando fui buscá-la, pois sabia que você estaria lá e não resistiria.

Rafael estava paralisado, olhando para aquele ser espectral, tentando articular palavra, medo e desespero se misturando em seu cérebro, as pernas tentando andar nas areias movediças onde ele estava enfiado, as mãos tentando se agarrar em algo sólido, algo que o tirasse desse pesadelo. Num esforço que exigiu toda a sua concentração, conseguiu balbuciar as palavras que saíram meio trôpegas:

−Me perdoe, me perdoe, eu farei qualquer coisa, nunca mais roubarei, por favor me perdoe.

Acordou chorando, babado, fedendo a urina, com suas últimas palavras ainda ecoando em sua cabeça: “Me perdoe”. Ficou feliz por ter sido apenas outro pesadelo. Estava refeito e pensando em retornar a sua vida normal. Com certeza nada iria acontecer a Jessica, era só paranoia de sua cabeça. Levantou-se do sofá. Teria que trocar as calças, sentiu-se um idiota por isso. Era só mais um pesadelo. Olhou para a mesinha e o livro havia sumido. Em seu lugar havia um bilhete de tonalidade amarelada. Ao abrir se deparou com a seguinte frase:

“Cumpra o que prometeu ou eu voltarei”.

Autora: Marta Regina Ceccato