A GAIOLA MALDITA (o caso da câmera de trânsito)




 
O céu de inverno lá fora estava límpido, e azul como sempre; antiga alegria dos cineastas. A temperatura amena, tendendo para o frio. Os ipês amarelos começavam sua floração, que só iria terminar no início da primavera. As roseiras e samambaias desabrochavam em flores e novos ramos, apesar da secura que imperava no ar.

Como em todo agosto, Baretta, a cacatua branca, fiel companheira das manhãs de Ed, adorava responder ao cântico dos canarinhos-da-terra, em seu cooper diário pelo parapeito da janela. Nosso soberbo protagonista sempre deixava algumas metades de banana e maracujá, frutas preferidas de nosso pet alado tropical.

Nesta inebriante atmosfera matinal, após mais uma noite de intenso raciocínio dedutivo, Ed Ronaldo iniciou seu ritual diário de exercícios de aquecimento no leito, embalado pelo matraquear da ...

 
— Uai!? Onde está Baretta? — a janela jazia triste, sem nenhum movimento; as moscas das frutas atacavam a refeição abandonada.

 
Bilau apareceu esfuziante, latindo de forma apreensiva. Algo de preocupante pairava no ar...

 
— Bilau, este seu latido não me passou despercebido!

 
Correu à casa vizinha, onde o poleiro de Baretta, vazio, denunciava algo de muito sério. Pela segunda vez, em muitos anos, já que uma cacatua vive por muitas décadas, Ed Ronaldo sentia o gosto amargo da solidão. A primeira fora quando da abdução sofrida pelos pets, na trilha perdida. Bilau e Baretta representavam seus escudeiros. Sem ambos, sua mente turbulenta entrava em processo letárgico.

 
— 09h56min. Espero que o chip funcione! — os minutos se sucediam, destituídos de sentido, no mostrador bolchevique de seu pulso.

 
Ed consultou seu iPad mini 4. Lá estava o aplicativo “Search for your pet”. Depois da abdução acontecida em Pedra do Monte, Diana Helena e Ederson haviam convencido os conservadores habitantes da pequena cidade histórica, a instalar chips de rastreio nas coleiras e anilhas dos animaizinhos.

 
— Vejamos: Gato Fred... 15 metros à esquerda, 9 metros à frente... aí está você seu bichano, no telhado da varanda — Ed andava rapidamente, ansioso — Cãozinho Bilau... 2 metros... sentido oposto — o latido de alerta confirmou a localização do canino, verdadeira sombra de seu vizinho astuto — Baretta... localização... nada!

 
Uma descarga adrenérgica sacudiu o físico desprovido de massa gordurosa de Ederson Ronaldo. Sentiu o solo a seus pés lhe faltar... seus 23 anos não lhe haviam ensinado a acordar sem a ave psitacídea. Fosse um ser humano trivial, teria se rendido ao desespero. Contudo...

 
— Baretta não morreu! Ou sua localização constaria no aplicativo. É isso: quem o roubou sabia do chip, e o retirou.

 
Subindo a rua inclinada porém, reparou num rastro diferente de pneus. Conhecia todos os automóveis vizinhos, e nenhum se encaixava naquela distância entre eixos.

 
— Hummm! É veículo grande; talvez uma picape.

 
Como é sabido por todos, sempre devemos ter um plano B, uma segunda opção, uma alternativa para enfrentar as circunstâncias do cotidiano. Em verdade, isso configura o diferencial entre o mortal corriqueiro, o qual geralmente não o tem (o plano B), e o indivíduo instado a papéis mais relevantes. Ed assim o sabia, e tinha consciência de seu dom. Afinal, “grandes poderes, ainda que mentais, trazem grandes responsabilidades”.

Ed, sabedor do risco sofrido por seu staff, em meio às suas investigações cada vez mais abrangentes, ensinara seus pets como se desvencilhar de arapucas de sequestradores ou contrabandistas de animais.
 

— Essa gentalha desprezível. Baretta, agora é com você! É seu primeiro trabalho de campo. Vamos amiguinho...

 
O inclemente relógio espião russo ritmava a longa agonia:

 
— 11h34min; viajando a cerca de 70 KM/hora, preciso procurar num raio de 150 Km daqui. Vamos Baretta, o posto da Polícia Rodoviária fica a 2 Km!

 
A Bike Cannondale F-SI Carbon 4, doação de Diana Helena, chispou pela viela em direção ao entroncamento de entrada de Pedra do Monte. Bilau acompanhou, em desabalada carreira, pois sabia que conseguiria voltar a tempo da ração da tarde.

 
— Policial Gomes, como vai o turno? Tudo tranquilo?
— “Olá Ed. Tá sumido rapaz. Cê num sai daquele cafofo seu hein? Aqui tá uma paradêra só.”
— Nada diferente Gomes? Tem certeza?
— “Nada, nada; tô é contano os dia pras minhas féria; ah! Só uma coisa engraçada hoje; tá aqui, vem vê procê vê... tá no filme; óia que massa!”

 
Ed suspirou de alívio, ao visualizar a carinha esperta de Baretta, com seu penacho amarelo e seu bico cinza, subindo e descendo, de ponta cabeça, em frente à câmera de trânsito.

 
— Gomes, Gomes, dá pra tirar uma foto e aumentar a imagem? É Baretta, a cacatua da minha rua. Foi roubada. Tá avisando onde está... isso Gomes... olha lá, no fundo, a placa na estrada: Km 74, BR 262... espera, mais à direita ali, estacionada ao lado daquela lanchonete... aquela caminhonete prateada... cheia de gaiolas; malditos! Pegou a placa?
— “Tô ligando aqui pro capitão Souza, lá daquela região. Tamo atrás desses vagabuno há muito tempo”.

 
Na manhã seguinte, ao espreguiçar-se em sua cama King size, Ed tomou como música em seus ouvidos a saudação de Baretta:

 
— “eeeeed, eeeed, tava na tvêeeee, tava na tvêeeeee”.

 
Nosso investigador ficou a remoer suas células cinzentas:

 
“Preciso estudar sobre a inteligência dos psitacídeos. Ensinei a abrir portinholas com o bico, mas daí a pedir socorro pela câmera de trânsito é demais.”

 
O sorriso se abriu orgulhoso, saudado pelo latido insistente de Bilau, a esperar seu quinhão de farinha láctea.







Obs 1) Inspirado na notícia: “Cacatua faz ‘photobomb” em câmera de trânsito na cidade australiana de Cairns”. G1, Planeta Bizarro, 01/06/2018, 07h33.