O RELÓGIO SUÍÇO

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HOJE, 17 de julho de 1930, fez três anos em que conheci Riel Goldstein em Canterbury. O garoto ruivo e magricela acabara de se tornar maior de idade. Ele usava um relógio suíço com detalhes em aço sofisticado e prata, que muito fez-me pensar se ele deveria usá-lo.

Sentei naquele banco de madeira na estação de trem, por volta de 10h da manhã, o dia estava nublado. Riel Goldstein lançou-me um olhar vazio; eu logo notei seu caixote de madeira e 'fiz que sim', então o garoto sentou-se aos meus pés e começou a engraxar meus sapatos.

Trocamos algumas palavras. Riel começou a perguntar sobre a Escócia e minha vida por lá, logo, porém, fiquei na dúvida se ele sobrevivia como eu, ou se apenas tinha curiosidade de um garoto que não conhece o mundo. Mas por fim, disse tudo o que o garoto curioso gostaria de ouvir sobre minha terra natal, e em seguida, perguntei-lhe sobre sua vida em Canterbury.

O garoto começou a balbuciar, vagamente distante e sem desfazer o semblante tristonho. Dava-me detalhes de absolutamente tudo o que lhe arrancava a paz interior, e eu, só conseguia olhar para o relógio, imaginando em como poderia rouba-lo. Mas inesperadamente, Riel Goldstein começou a lacrimejar; e falava ressentidamente sobre as infelicidades de sua vida. E logo notei que não havia exageros da parte dele. Riel usava trajes sem vida e as botas desgastadas. E tinha no rosto uma grande tristeza que vinha de dentro do seu corpo para fora.

Tentei não me perturbar com aquilo, mas de forma alguma não resistir, e acabei acalantando-o, quando simplesmente começou a chorar sobre minhas pernas ao dizer essas coisas:

– Meu Senhor, ainda sou um garotinho... Ainda tenho tantos sonhos dentro de mim que nem cabem no meu peito. – Riel falava entristecido, conforme as palavras saiam de sua boca.

Ele afastou um pouco de poeira imaginaria, e continuo falando, particularmente sem nenhuma excitação.

–Tenho muitos irmãos, Meu Senhor. Meu Pai é um simples marceneiro, desempregado, meu Senhor. Estou aqui, desde o cantar do galo sem mesmo ter comido um desjejum, na esperança de engraxar alguns pares de sapatos e comprar alimentos para minha família. Meu Senhor, faço hoje vinte e um anos, e nunca sequer ganhei um presente; todas as minhas roupas foram do meu irmão mais velho, e certamente passarei ao meu irmão mais novo!

Não conseguir impedir que as lágrimas também se atirassem sobre meu rosto. Riel então se sentou novamente, e pude olhar em seus olhos, pareciam tão fundos como abismos. As pálpebras inchadas, e aquela expressão como de um passarinho que deixou de cantar.

E tão choroso quanto o início, continuou sua trágica narrativa, sem se importar como minha aprovação.

– Meu Senhor, queria eu, um dia, estudar. Só aprendi a escrever meu nome porque minha mãe ensinou. Também desejo, Meu Senhor, um dia acordar e nunca mais me importar se vamos ter alguma coisa para comer. Não que eu seja preguiçoso, meu Senhor, não é isso! É que eu queria ter um pouco mais de tempo livre para fazer coisas que eu cresci vendo outros garotos fazerem, como: Praticar artes, cavalgar, ler livros, ir ao dancing, talvez! Na minha casa não fazemos esses tipos de coisas, meu Senhor. Todos nós temos que ajudar com alguma tarefa. Por exemplo, meu Senhor, minhas duas irmãs ajudam nossa mãe a lavar roupas, meu irmão caçula também trabalha de engraxate, assim como eu. E se um dia eu pudesse plantar alguma coisa, milho, trigo, tanto faz, eu conseguiria tirar minha família dessa desgraça de vida.

Por um momento notei que as lágrimas do garoto iam sumindo sem se apegar. E a minha curiosidade fez como que eu perguntasse as indelicadezas que antes evitava fazer.

– Meu Garoto, e o seu irmão mais velho? Trabalha com seu pai, por acaso? – Perguntei, embora não fosse possível negar ou esconder tal constrangimento da intromissão.

Riel ficou em silêncio. Parecia distante outra vez, e sem me olhar nos olhos respondeu:

– Ele morreu de tuberculose há dois anos!

Sentir minha garganta espremer. Então, Riel continuou dizendo:

– Meu pai, por causa disso, se perdeu nos bares. Jamais aceitou a partida de meu irmão. Mas, meu Senhor, não sofro só por essas coisas. – dizia ele, arquejante. Repentinamente aflito – Meus infortúnios vêm por parte de Margery, ela certamente nunca se casará comigo, seus pais jamais permitiriam, Meu Senhor.

Houve uma pausa, enquanto ele buscar ar. Aproveitei para observar em volta, mas ninguém nos dava atenção, nenhum olhar curioso ao menos. Mas, havia uma porção de pessoas naquela estação, homens, mulheres e crianças bem vestidos, perfumados, e consequentemente, talvez, com o estomago forrado de comida. Porém, apenas eu, – um ladrão de bancos, estava dando ouvidos a um pobre garoto invisível daquela cidade.

– Não tenho posses, nem uma libra seque, não sou homem para ela! – Choramingava o garoto.

Riel parou de esfregar meus sapatos, e enxugou o nariz. Aproveitei para consultar o relógio de bolso.

– Você tem quer ir, meu senhor, tomei muito seu tempo? – Perguntou ele. Balancei a cabeça em positivo.

– Meu Senhor, és muito gentil, um ótimo ouvinte; espero que seu trem não demore a sair e, que sua viagem seja agradável, meu Senhor.

Assenti lentamente, abrindo meio sorriso, sem nenhum dente. Riel dava mais uma polida nos meus sapatos de couro francês, enquanto eu consultava o relógio pela última vez.

Dei ao jovem garoto três libras, como paga pelo serviço. Ele não escondeu sua felicidade e nem poderia, três moedas eram o mesmo que lhe tivesse pagado para engraxar meus sapatos por uma semana. No comum, ele recebia bem menos do que isso.

Riel Goldstein organizava suas coisas, quando eu pensava no motivo em que ainda não havia vendido o relógio. Talvez, fosse roubado, ou um presente. Mas quem daria um presente assim para um garoto miserável?

Enquanto eu estava imaginando tantas coisas, o meu trem apitou pela primeira vez; Riel Goldstein levantou-se e abriu um sorriso.

Fora seu primeiro sorriso, que lhe iluminava a alma.

– Obrigado, meu Senhor! Tenha uma ótima viagem!

Assenti como resposta.

O garoto passou por mim, então, de súbito, pegue-lo pelo braço. Ele assustou-se, lançando-me um olhar frio. Moveu os lábios, mas por fim, nada disse.

– Por que não vende o relógio e compra sementes para o plantio?

– Porque o relógio não pertence a mim, meu Senhor, é do pai de Margery. Ela quebrou a alça, então eu disse que poderia concerta-lo. Vou devolver à tarde, quando ela vier ao alfaiate, meu Senhor! – explicou ele, com certa impaciência.

Soltei o braço do menino, ele continuou a encarar-me. Duvidoso, vermelho como sangue.

De fato, eu estava enganado. Riel Goldstein era honesto, bem diferente de mim. Era só um menino sem muitas ambições, que vivia uma vida dura e miserável.

Ele moveu os pés, lentamente e cauteloso.

– Garoto, tenho um presente a você! – Falei a ele, no momento em que decidira seguir seu caminho. Ele parou. Então, enfiei a mão em minha mala, e puxei uma pequena bolsa de couro.

– É pelo seu aniversário! E, por ser um homem honesto!

Ele se voltou a mim. Mas, não se moveu.

– São as economias que eu vinha juntando, ao logo do meu trabalho, aqui na Inglaterra. – expliquei, apontando a bolsa em sua direção.

Ele pensou.

– Trabalha no quê, meu Senhor? – Indagou.

–Com bancos! – Respondi em definitivo.

Riel Goldstein pensou por um momento. Mas por fim, recusou como qualquer homem sensato faria.

Meia hora depois, enquanto guardava minhas coisas no bagageiro. Um grupo de homens da lei prendeu-me, e levaram-me ao cárcere. Eu havia cometido três assaltos a bancos nas cidades de Nettingham, Brighton e Cambridge, respectivamente. Meus comparsas já haviam regressado a Edimburgo. E eu, ainda estava ali, em Canterbury procurando pista do paradeiro de meu pai. Do qual, descobrir que se convertera ao cristianismo antes de sua precoce morte, aos 53 anos, vitima de Varíola.

HOJE, faz três anos em que conheci Riel Goldstein em Canterbury. Três anos em que estou preso. E só hoje, 17 de Julho de 1930, recebi uma carta anônima com selo de Nettingham. Nela contavam a vida de um garoto Inglês de origem pobre, que começou a plantar milho e maças em uma de suas fazendas no condado de Nottinghamshire, e curiosamente já dominava o monopólio de vendas na região. Esse garoto casou-se com Lady Margery Gwen Waugh, dramaturga e escritora romancista de 22 anos, do qual o célebre escritor George Orwell referiu-se como “A pérola da Inglaterra”. E mais, o tal garoto mandou-me também um relógio suíço e três libras.

Não posso negar que estranhei os presentes do meu anônimo. Pois, concedia justamente com o dia do meu enforcamento. Eu fui condenado depois de três anos de investigação sobre meus “empréstimos” a instituições bancarias de setes cidades em três países.

Meu sofisticado relógio suíço marcava 11h quando fui levado à cidade. Ao subir o palanque com o rosto coberto e as mãos amarradas. Ouvir erupções de risos, e gritos excitados pedindo-me a morte naquele instante. Alguém me atingiu com um tomate no rosto, e em sequencia uma maça nos meus testículos.

Ao removerem o tecido que cobria meu rosto, assustei-me de imediato, pois, havia muitas pessoas, bem mais do que num enforcamento comum. E um homem de olhinhos pequenos e barrigudo, levantou-se de onde estava sentado e fez com que todos ficassem em silêncio.

– Senhoras e Senhores, aqui está, Jack Robert Mylne. Responsável, pelos roubos em: Âlborg, Elsenor, Cardiff, Newport, Nettingham, Brighton e Cambridge. – Disse ele, enquanto muitos gritavam e atiravam coisas a minha direção.

Não deixei de notar que o palanque estava próximo a Abadia de santo Agostinho, do qual conseguir ver o portão principal com suas ameias. Uma visão incrivelmente bela de todo o mosteiro, do qual nunca havia notado daquela forma.

– Como fora combinado, com os donos de bancos da Inglaterra, País de Gales e Dinamarca, HOJE, entregaremos a última parte da recompensa oferecida a quem entregasse vivo ou morto, Jack Mylne. Então, desde já, agradeço ao Sir Riel Goldstein pelo seu serviço prestado a esses países.

De súbito olhei para todos os lados, mas o “Sir” Riel Goldstein, não estava presente. Minha cabeça, doía e minha garganta parecia mais seca do que nunca. Então, um pensamento denso e obscuro, me fez lembrar que, lorde John Philip Waugh era sócio de um banco em Nettingham. Então, as cartas foram se combinando no meu tabuleiro, e eu, só conseguia enxergar aquele miserável garoto entregando-me aos oficias, e certamente depois, ao pai de Margery.

Tive compaixão e em troca recebi traição, mas sou um ladrão, o que eu deveria esperar dos outros? Lembrei-me de meu pai, ao menos fora enterrado com honra, teve a sorte de não morrer na mão de ninguém.

Alguém puxou a alavanca, de imediato cair num fosso, e a corda logo tratou de apertar minha garganta, produzindo um formigamento completo em meu corpo e uma dor indescritível. Ainda conseguir ouvir gritos e aplausos, porém, eu fui solitariamente aos poucos...

Ari Poeta
Enviado por Ari Poeta em 24/08/2021
Reeditado em 02/09/2021
Código do texto: T7327166
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