O morto recorrente

Encontrei Ertunk sentado à uma mesa nos fundos da cafeteria, e ele me pareceu preocupado.

- Demir está vivo - afirmou, expressão contraída.

- Como pode ser isso? - Questionei incrédulo. - Você o matou, e eu verifiquei que estava mesmo morto, antes de incinerarmos o corpo na carvoaria!

- Pois é justamente isso que está me deixando preocupado - redarguiu Ertunk. - Não sobrou nada além de cinzas e uns cacos de ossos. Como vamos saber agora se era realmente ele?

Apoiei os braços sobre a mesa e encarei Ertunk.

- Você não conferiu a identidade antes de meter uma bala na cabeça dele?

Ertunk pareceu ficar realmente aborrecido.

- Não sou amador, Tugay. Já matei muita gente por encomenda e nunca cometi erros; eu sei que era o Demir, que incineramos o cadáver dele... e que agora está bem vivo. Eu o vi; estava na sede da fazenda, falando com o capataz.

- Você o viu de perto? - Questionei.

- Os trabalhadores da fazenda o conhecem melhor do que eu ou você - insistiu. - Acredita que obedeceriam ordens de um sósia ou impostor?

- E se Demir tiver um irmão gêmeo? - Sugeri.

Ertunk fez um gesto negativo.

- Demir só tem uma irmã, que não é gêmea e que mora na Austrália. Com certeza, não era ela.

Franzi a testa.

- Mas se não foi o corpo de Demir que incineramos, de quem foi então?

- Só há um meio de resolver isso - declarou Ertunk. - Vou ter que matar esse outro Demir também.

* * *

Noite alta, colocamos o corpo na mala do carro e tocamos para a carvoaria.

- Era mesmo o Demir... desta vez? - Questionei, enquanto dirigia.

- Exatamente como da vez anterior - retrucou Ertunk. - Você viu os documentos na carteira dele... aliás, igualzinha à carteira que queimamos com o defunto anterior.

Ele tinha razão; tanto pela aparência física quanto pelos documentos, o corpo que levávamos no porta-malas era mesmo de Demir.

- Vamos terminar logo essa história - repliquei, sem tirar os olhos da estrada escura.

* * *

Na manhã seguinte, ao ligar a TV, vi que a apresentadora do noticiário tinha um entrevistado na bancada do estúdio: era Demir.

- Entrevista gravada - resmunguei, enquanto colocava a água do café para ferver.

Na tela, o entrevistado fez referência a um evento que aconteceria em sua fazenda, daí a dois dias.

- Quero fazer do lançamento do projeto um acontecimento em escala nacional - afirmou sorridente Demir. - Por isso resolvi vir ao seu programa, para revelar isso em primeira mão.

- É sempre uma grande satisfação poder recebê-lo, Sr. Ozcan - replicou a apresentadora. - E no bloco a seguir, vocês vão acompanhar a movimentação do trânsito neste retorno do feriado...

Apaguei a boca do fogão e olhei para a TV, sem querer acreditar no que estava vendo e ouvindo. Hoje era o dia após o retorno do feriado, a entrevista era ao vivo.

Meu celular tocou. Atendi-o mecanicamente, sem olhar para a tela.

- Tugay, você viu a TV? - Indagou a voz de Ertunk.

Ele estava mais assustado do que eu, percebi.

- Sim, acabei de ver... - murmurei.

Desnecessário dizer que ambos pensamos simultaneamente: Demir está vivo.

- [10-11-2021]