EIS QUE SURGE A LUZ EM SEU CAMINHO

Como era de costume, findo o expediente, Amélia deixou a repartição na Esplanada dos Ministérios e foi-se para casa pelo caminho das Embaixadas, oficialmente denominado de L3. A capital federal fora planejada como receita de sopa de letras, nem sempre coincidente com o paladar da população local, que vez por outra criava ingrediente próprio para melhorar o gosto do prato. Referências mais populares atendiam ao sentido de direção preferentemente às siglas, letras e números.

A diligente funcionária nem se preocupa no momento com semelhante circunstância, fruto da tendência do narrador aos comentários periféricos. Sua mente concentra-se tão-somente em dar partida no motor e chegar ao recôndito lar após mais uma jornada envolta com questões de transporte neste país onde a infraestrutura viária deixa muito a desejar (embora não tanto quanto a educação, ciência e tecnologia e outros setores decerto prioritários na avaliação de diferentes críticos).

Em seu habitual trajeto, Amélia procura distrair-se com as canções do rádio, sem perder a atenção no tráfego, conquanto este se mostre tranquilo àquela hora da noite. Poucos veículos no percurso, em ambas as direções. Rotina conhecida, que súbito se desfaz com a percepção de um carro ainda distante, no sentido contrário, cujas luzes são muito fortes. Como alguém pode andar assim de farol alto, pergunta-se ela, mesmo levando em conta a deficiente iluminação da cidade, permanente risco para pedestres, motoristas e demais usuários.

A condutora sente-se incomodada por luz tão intensa. Mais do que isso. Toma o procedimento incivilizado do outro motorista como a ameaça de iminente ataque contra si. Não tem dúvida, desvia-se da rota e toma o primeiro acesso à direita para a L2. Entra ali e acelera, olhando pelo retrovisor, na certeza algo nervosa de que o tipo virá no seu encalço.

De fato, os faróis altos apontam no início da pequena rua quando ela dali já sai e ingressa em via mais trafegada, na qual seu automóvel se mistura aos demais e torna-se difícil de perseguir. Alcançada a L2, não avista a luz agressiva do temido algoz. Chega sem sobressalto a seu edifício (bloco na terminologia brasiliense).

Alguns telefonemas e já sai Amélia novamente para reunir-se com amigos, sem luzes incômodas a perturbar as ideias.

Duas noites depois, rumo à celebração de mais um Dia Nacional da Cerveja, a jovem senhora é surpreendida no Eixão pelo desmedido farol que se aproxima da traseira do seu carro acima da velocidade ali permitida. Como estava próxima da saída para o Eixo Leste, ali entra (com o perdão do contrassenso, típico do Brasil), cantando pneu, e observa o alucinado motorista seguir como bólido. Nem consegue distinguir o modelo do veículo, muito menos a placa, se havia. Com o coração aos saltos, convence-se de que teria sido abalroada em acidente fatal caso não se desviasse de imediato como o fizera.

O fato inusitado virou petisco amargo na roda de chope com os amigos, todos estarrecidos e revoltados pela imprudência do chofer voador. Aliás, seria homem ou mulher? Adolescente irresponsável? A maioria descartou a hipótese de assassino(a), preferindo alguns a alternativa de suicida. Se assim fosse, ponderou a ainda abalada vítima do descalabro, que cometesse o suicídio de forma solitária, sem pretender levar alguém junto em sua atitude insana. Um intelectual de carteirinha procurou refletir que o ato de retirar-se da vida não significaria insanidade, necessariamente, mas logo a conversa voltou a temas mais agradáveis e condizentes com a boa sexta-feira.

O estrago estava feito, no entanto. A diligente funcionária começou a sentir-se insegura, inclusive nos pareceres que devia emitir no trabalho. Quase não usava seu carro, se não dispusesse de companhia. Mesmo de motorista, bastava qualquer farol alto para alarmá-la. Passou a dormir com a luz do corredor de seu apartamento ligada, como se a iluminação caseira pudesse assegurar proteção contra o brilho ensandecido de faróis que a fitavam como olhos da morte anunciada.

Amélia não se sente mais mulher de verdade, como sua homônima da obra de mestre Ataulfo Alves. Considera-se vulnerada em seu âmago e sua privacidade, fragilizada ante a ameaça da agressão. Não encontra razões plausíveis para que alguém queira atentar contra sua vida. Não lhe ocorre qualquer antecedente de parecer que haja emitido, passível de contrariar o interesse de empresa ou pessoa física a tal ponto de transformá-la em alvo de retaliação.

Suspeita de eventual alucinação, mas logo afasta semelhante hipótese. Sempre foi cidadã equilibrada, sem arroubos passionais, políticos, esportivos ou de outra natureza. Nenhum de seus amores pregressos se desfez de maneira dramática, conducente a ressentimentos de parte a parte. Aquela luz intensa que cortava o espaço feito punhal nada tinha de alucinante. Pura e indiscutível realidade! Verdadeiros holofotes que se projetavam contra ela, como que a acusá-la, denegri-la, dispostos a destruí-la.

Cansada das inconclusivas reflexões, enche-se de coragem e decide enfrentar as luzes desafiantes. Volta a dirigir sozinha. À noite, ao retornar do ministério, mantém seu trajeto usual.

Na primeira vez em que percebe um carro de farol alto que com ela cruzará, Amélia continua firme e mira resoluta para ele, procurando sobrepor seu olhar ao facho de luz e visualizar o motorista. Não chega a distingui-lo bem, parecia senhor de idade, mas nada de notável se passa.

Noutra ocasião, os faróis impertinentes vêm de trás, céleres, e ela reduz sua marcha para ver o que acontece. A pick-up ultrapassa-a e prossegue veloz, sem reduzir a luz, mesmo quando cruza outros carros. Desatencioso! Imprudente! Exclama em voz baixa a irritada condutora.

Outros faróis altos vêm e vão-se. A vida de Amélia retoma a rotina.

Abrem-se novas vias. Decompõem-se outras tantas. Transportar é abrir governos.

Luzes, por mais fortes que sejam, não conseguem iluminar inesperados descaminhos.

Alucinação mesmo é acreditar que tudo está normal...

Fevereiro 2020.