Linhas feitas de sangue

Era um homem de infinitas dúvidas e poucas certezas. Uma dessas coisas de que estava certo era que não possuía a habilidade necessária para tornar-se o que sempre achou que um dia viria a ser: um grande escritor. Até então, esta constatação nunca havia se tornado um problema para ele, mas de um certo tempo para cá, isso já estava começando a causar-lhe um pequeno incomodo. O fato de já ter escrito poemas que lhe davam a sensação de terem sido concebidos não com os pés no chão, mas sim a dez mil metros de altura, davam-lhe a impressão de já estar no grande panteão dos maiores poetas da história. Mas havia um problema aí. Não considerava mais a poesia como a consequência de um ato genial. As linhas em versos já não mais aliviavam a sua alma. Que importavam agora as palavras rimando entre si? Tinha perdido completamente a graça fazer esse tipo de trabalho intelectual. Estava se tornando cada vez mais comum o abatimento sobre seu espírito toda vez que finalizava o último verso de seu mais novo texto poético. Primeiro, vinha um entusiasmo por ter escrito algo que, a princípio, tinha para ele uma grande relevância, mas, poucos segundos depois, essa pequena dose de admiração por si mesmo transformava-se, como num passe de mágica, em nada mais do que a sensação de ter feito algo insignificante, de ter transformado palavras surgidas de uma só vez, num turbilhão de ideias, em apenas rabiscos justapostos sem nexo algum. Mas tinha colocado para si um objetivo, algo que não mais o fizesse ter a sensação de ser um lixo como escritor, e esse objetivo era escrever agora em prosa. Será que conseguiria mudar essa intuição que tinha de ser um medíocre com a caneta nas mãos?

Estava disposto a mudar essa ideia de si mesmo. Achou que o mais sensato para esse processo de transformação como escritor seria começar com um conto. Mas escrever sobre o que? Lera até o momento uma grande quantidade de obras dos escritores mais geniais, e isso lhe dava cada vez mais e sensação de que nunca conseguiria escrever algo que chegasse pelo menos aos pés dessas grandes almas, desses seres que faziam com que as palavras ficassem em perfeita harmonia sobre o papel e que a leitura destes textos fluísse de uma forma leve e natural, tornando-se apenas um grande prazer para àqueles que as lessem. Estava numa incógnita; não sabia por onde começar. Quem sabe uma frase ou aforisma de um destes grandes gênios poderia servir de mola propulsora para, então, sair dessa inércia literária que se encontrava. A primeira sentença que surgiu na sua cabeça foi: "Escrevas com sangue e verás que sangue é espírito." Ah, Nietzsche! O grande mestre alemão sabia como ninguém sobre o espírito humano, demasiado humano; por conta disso, sabia também que a escrita, tanto em verso como em prosa, tem que partir de um pressuposto desses, de uma constatação de que para se chegar a uma espécie de transformação espiritual através da escrita, o texto tem que vir banhado ao principal elemento que caracteriza a vida : o sangue. As palavras devem surgir do estômago, das vísceras, do sangue em que estão banhados nossos órgãos dentro de cada um, do sangue em que nosso cérebro está mergulhado, desse sangue que nos dá a verdadeira sensação de estarmos vivos para escrever, e escrever é o maior sinal de estar vivo, e estar vivo é o principal elemento para alcançar uma plenitude espiritual; só assim para o texto ter vida e para a vida ser retratada com mais exatidão através dos textos. E sua poesia tinha vida, tinha sido feita através do sangue do seu sofrimento, sangue que devia passar por algum tipo de refinação nas córneas oculares ou em outra parte do crânio antes de cair no papel em forma de lágrimas. Era apenas isso que necessitava para que seu primeiro conto também nascesse com essa vitalidade que suas poesias tinham. Pensou mais um pouco sobre o que escrever, mas o cair da tarde já estava se aproximando e através da janela de seu quarto onde estava tentando escrever as primeiras linhas de seu primeiro conto, já se podia ver o horizonte facetado de múltiplas cores, fazendo com que o pôr do sol lhe desse aquela mesma sensação que sempre lhe ocorria nesse momento do dia: a impressão de que esse processo de rotação terrestre onde o sol cai além do horizonte, fosse ao mesmo tempo o momento mais feliz e mais triste do dia; e então pensou que talvez houvesse ainda dentro de si uma fagulha capaz de acender essa chama da poesia que sabia que ainda morava dentro dele. Pegou a caneta e o papel e...

Para a minha sorte

Convivo muito bem

Tanto com a vida

Como com a morte

O dias passam

E me sinto cada vez

Muito mais forte

A minha arte

Só é concebida

Depois de comigo mesmo

Eu entrar em combate

E no final do duelo

Minhas duas partes

Em vez de fazerem as pazes

Lutam como

Dois monstros ferozes

Fazendo com que

O bem e o mal

Que moram dentro de mim

Sejam meus dois únicos algozes.

Igor Grillo
Enviado por Igor Grillo em 29/12/2021
Reeditado em 29/12/2021
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