O dom da cura

Fiquei consternado ao chegar à casa do meu amigo Athäm, a quem eu não via há anos, e descobrir que a filha caçula dele, Ziliä, estava de cama com a febre do pântano - uma doença quase sempre fatal em crianças daquela idade. Estranhamente, Athäm não parecia preocupado.

- Já mandei chamar o emshi - declarou serenamente. - Ele mora nos arredores da vila, deve estar chegando.

- Esse seu emshi deve ser realmente muito bom - comentei intrigado, sem me atrever a tecer comentários sobre a virulência da enfermidade.

- Se o emshi chegar antes que o doente dê o seu último suspiro, consegue arrancá-lo dos braços do próprio Erlik - afirmou confiantemente.

- Já vi emshiler capazes de negociar a cura com Erlik, mas este seu curador parece estar num outro nível - avaliei.

- Aguarde e verá - redarguiu Athäm.

Um burburinho fora da casa indicou que o curador havia chegado. Pouco depois, ele entrou: um homem alto e magro, vestido de preto dos pés à cabeça, cabelo e rosto cobertos por um cachecol de lã, deixando apenas os olhos castanhos de fora. O recém-chegado lançou-me um olhar de curiosidade, como se não esperasse ver um estrangeiro ali. Depois, voltou-se para meu anfitrião.

- Deixe-me ver sua filha.

Ao ouvir a voz, esta me pareceu familiar, embora isso fosse improvável; o homem ao qual ela pertencera, deveria estar morto há muito.

Athäm pegou o curador pelo braço e ambos entraram no quarto da menina. A porta fechou-se atrás deles.

* * *

Uma hora depois, a porta abriu-se e Ziliä surgiu, ainda fraca mas obviamente viva, entre o pai e o emshi. Os parentes e amigos presentes prorromperam em gritos de alegria. Apenas eu permaneci em silêncio, braços cruzados, observando a cena.

- Ela está curada, mas deve repousar por mais um dia - especificou o curador. - Alimentem-na bem e não a perturbem.

O emshi foi saindo, os familiares de Athäm tocando reverentemente em suas vestes como se ele fosse um homem santo. Eu o segui até o lado de fora, e quando ele estava prestes a subir no cavalo, eu o interpelei.

- Eles não sabem quem você é, correto?

Os olhos por entre as voltas do cachecol brilharam.

- E quem você pensa quem eu sou?

- Yulay, o necromante.

- Yulay está morto - replicou ele, montando. - Eu sou Khasan, o curador.

- O que o povo da vila irá dizer, quando souberem que está tirando a vida de inocentes para salvar os seus amigos e parentes?

O suposto emshi deu de ombros.

- Não sei do que está falando; sou apenas um curador bastante experiente.

Mas antes de partir, encarou-me e disse entredentes:

- Sou muito grato ao povo da vila. Tome cuidado para que alguém aqui não precise ser resgatado dos mortos, enquanto você ainda está por perto...

- [12-02-2022]