PODE VIR ANTES QUE ESFRIE

É noite do plantão do velho Ângelo na portaria do edifício (bloco, na terminologia brasiliense). Mais antigo dos porteiros, deverá aposentar-se em breve e, como de hábito, põe-se a relembrar passagens do seu dia-a-dia. Vez por outra, projeta seus planos para quando se libere do trabalho. A casinha recém-terminada na beira da praia...

Soa o interfone. Ângelo nem conseguiu visualizar sua morada praiana direito. Quem pode ser? Ah, sim, chamam do 307. Já passa das 23 horas, quase meia-noite, pelo que percebe na rápida vista d’olhos pelo fiel relógio de pulso.

Alô! A voz parece a do Dr. Epaminondas, o proprietário, embora mais arrastada. Pergunta-lhe se está tudo bem, ao que o porteiro responde prontamente que sim, na graça de Deus.

Começa uma conversa mole, algo estranha na verdade, sabendo-se quão ocupado costuma mostrar-se o interlocutor, homem de muitos negócios.

Após pedir e receber notícias da família de Ângelo, a voz finalmente revela não ser a de Epaminondas. “Por falar em família, você pode vir aqui recolher os corpos dos donos da casa e de seus filhos. Melhor fazê-lo antes que esfriem”.

Sem que o estupefato porteiro possa reagir, o fone desliga do outro lado. Terá sido um trote? Não, os filhos do homem não fariam isso. Tenta falar com o síndico, deixa recado e decide ligar para a polícia, pelo sim, pelo não.

Dr. Jerônimo, o síndico, chama de volta minutos antes da chegada de uma viatura policial. Sabendo dos guardas, diz que já desce. Sai do elevador de sua prumada a tempo de encontrar o porteiro e os policiais a caminho da cena do crime anunciado.

A porta de serviço do apartamento 307 encontra-se aberta. Na cozinha, o interfone está dependurado fora do gancho, como se alguém o tivesse largado assim. Ângelo e Jerônimo demonstram nervosismo à medida que percorrem os demais cômodos da residência na companhia dos agentes da lei.

Nenhum corpo é encontrado, porém. O síndico acaba por lembrar-se de ter ouvido o vizinho de Epaminondas comentar que o empresário tencionava viajar por aqueles dias, para fechar uma transação, e levar a família junto. De todo modo, fica óbvio que o autor da aparente brincadeira sem graça entrou no apartamento e de lá efetuou a chamada. Os policiais tomam nota de diferentes informações e solicitam ao porteiro comparecer à delegacia para o registro da ocorrência.

Uma semana depois, durante o turno de Honório, o interfone chama depois da meia-noite, interrompendo o ensaio de cochilo do jovem porteiro. Dessa vez, é do 505, que esteve em obras até pouco tempo atrás. Mesmo um pouco sonolento, o rapaz percebe que a voz, masculina e arrastada, não corresponde à da D. Patrícia.

O autor da chamada tece comentários depreciativos e debochados acerca dos péssimos trabalhos efetuados no imóvel. Honório não entende o sentido de tal conversa àquela hora tardia até que o tipo conclui que, para obra tão ruim, só mesmo cortando a garganta da pessoa inepta que a contratou. Foi o que ele fez de pronto, sem nem mesmo haver estuprado a proprietária, apesar de “ela não ser de jogar fora, como se costuma dizer”. Após rir da própria piada asquerosa, recomenda ao porteiro vir logo buscar a degolada, antes que ela esfrie. “Trate de apressar-se ou poderá ser o próximo!”

Assustado ainda mais com semelhante ameaça, Honório liga para o síndico, conta o que se passou e pede encarecidamente que o Dr. Jerônimo chame a polícia, pois quer sair de imediato da portaria e esconder-se até que os guardas cheguem.

Novamente, policiais e síndico encontram a entrada de serviço do apartamento aberta e o fone fora do gancho. Enquanto efetuam a busca, D. Patrícia chega da festa a que fora, já informada pelo porteiro do que ocorrera. Ainda um tanto ébria, pergunta, sorridente, se pegaram seu assassino. Depois, cai em si e assusta-se com o fato de sua morada haver sido invadida daquele jeito inexplicável. Jamais empresta sua chave a quem quer que seja, nem mesmo à fiel cozinheira de décadas no serviço.

Nos dias que se seguem, as chamadas repetem-se, de variados apartamentos. Em alguns casos, a voz arrastada (qualificada como tenebrosa ou sádica pelos porteiros mais impressionados) descreve, com requinte de crueldade, a forma como executou os moradores. Em outras ocasiões, termina, com ameaças aos interlocutores na portaria, o habitual pedido de virem buscar os corpos antes que esfriem.

A polícia, inconformada por somente atender a trotes de mau gosto, não encontra digitais ou qualquer outra pista. Condôminos que apoiavam o síndico para a instalação de câmaras de segurança em todos os andares voltam à carga, reclamando da maioria que preferiu instalá-las unicamente na garagem. Instaura-se clima de animosidade crescente, com suspeitas mútuas e troca de recriminações nas assembleias extraordinárias convocadas para discutir a situação. Alvo de acusações, o humorista do 406 retruca que o autor dos “crimes” deve ser o padeiro do comércio da quadra, quem vive a recomendar a seus clientes que levem os pães enquanto estão quentes.

Em meio ao caos, o velho porteiro Ângelo aposenta-se e parte para sua praia antes que sua saúde se debilite pelo uso de calmantes.

No primeiro plantão do substituto, à guisa de maldosas boas-vindas, o interfone chama do apartamento 608 pouco depois da meia-noite. A voz, mais arrastada do que nunca, informa que decidiu punir, impondo-lhe a pena máxima, o mísero ancião que nada fez senão acumular fracassos ao longo de sua existência. Sem deixar de observar quão curta fora a comunicação, em comparação às que lhe haviam sido relatadas pelos colegas, o novo porteiro liga de imediato para o síndico e a polícia.

Dessa vez, o corpo está lá, como anunciado. Sentado na cadeira giratória de seu escritório, com o tronco e os braços pendidos sobre a mesa, repousa, inerte, o Dr. Juca. O policial mais experiente desconfia de provável suicídio. A perícia indica, todavia, uma parada cardíaca como a causa mortis. Ocorrida em momento coincidente com o telefonema.

Enquanto boa parte dos vizinhos descrê que Juca seja responsável pelos seguidos casos de falsos assassinatos, outros tantos admitem essa possibilidade. O tipo sempre fora ultra-reservado. Vivia meio recluso, a evitar maior contato com quem quer que fosse. Nunca participara das assembleias do condomínio.

O grupo incriminador ganha força ao descobrir-se que Juca tentou ser escritor de contos policiais, sem maior êxito, contudo. Consta que ele se desiludiu ante as reações desfavoráveis às suas histórias, cujos finais não convenciam críticos literários e leitores. Alguns moradores chegam a ler obras do falecido e a apontar coincidências entre os crimes ali narrados e os assassinatos relatados aos porteiros. O síndico julga tênues e superficiais, no entanto, as ligações que se pretendem estabelecer.

Dúvida persistente consiste também em saber como o autor dos telefonemas dispunha de cópias das chaves de tantos apartamentos. As investigações em torno da serralheria que em geral atendia ao condomínio revelam-se infrutíferas. Afigura-se ainda mais improvável que alguém, recluso e insociável como o Juca, tenha obtido tais cópias. Não faltam reclamações quanto aos alegados sinais de descaso e de incompetência por parte da polícia no tocante aos estranhos episódios.

Menos de uma semana depois, repete-se a chamada pelo interfone do apartamento 608. João Cândido, atual decano da portaria, fica mais intrigado do que apavorado ao ouvir a mesma voz arrastada investir contra a falta de caráter e a mediocridade de todos os condôminos para finalmente concluir que não perderia mais tempo em puni-los.

O único policial que comparece ao edifício (com evidente má vontade) constata que a porta do 608 está fechada, diferentemente dos casos anteriores. A exemplo do apartamento, fechado desde a morte do Dr. Juca.

O tempo passa, mas permanecem os sobressaltos do pessoal à noite na portaria quando toca o interfone. A vida dos moradores tampouco é a mesma, ao sabor de desconfianças mútuas e das questões não respondidas.

Parecem ignorar que o fracassado autor de contos policiais conseguiu seu final misterioso e instigante...

Março 2022.