Kwame e as mães anciãs . Parte 1

Há muito tempo muito antes das areias do tempo invadirem a savana do Saara e torná-la no imenso deserto que conhecemos hoje, existia um grande e próspero reino naquelas cercanias. O reino de Ebwano era a nação mais forte, mais temida e mais rica de todo o continente africano. Sua posição geográfica lhe favorecia a agricultura nas proximidades do rio, a metalurgia com o ferro extraído das montanhas que o resguardavam dos inimigos e por fim de toda riqueza oferecida pelos mares não tão distantes. Durante o passar dos anos muitos dinastas erguiam-se e ruíam, não tardaria para o legado do grande Kwame findar, pois, sentindo aproximar-se seus últimos dias em vida, o velho rei decidiu consultar-se com um poderoso adivinho andarilho que chegara a poucos dias em seu reino. O monarca tinha três filhos muito distintos e queria saber para qual deles deveria passar a coroa, o legado e o futuro de sua nação. Então, mandou alguns guardas encontrarem e presentearem o sábio homem com ouro, tecidos, cestos de cauris e por fim trazerem-no como um convidado de honra para a corte.

O adivinho era muito conhecido dentre as longevas terras de África. O homem era cego desde seu nascimento, mas em nada parecia lhe afetar tal limitação, muito pelo contrário, talvez tivesse sido a cegueira do corpo quem lhe abrira os olhos da alma. Aparentava ser muito velho por fora, no entanto, carregava dentro de si uma jovialidade e uma natureza humilde, portanto não aceitou as honrarias luxuosas que lhe foram dirigidas. Agradeceu à gentileza e pediu que tudo fosse repartido entre os mais pobres, contudo, como não podia desobedecer a uma ordem real decidiu atender ao chamado do rei. Chegando ao palácio surpreendeu ao monarca e aos príncipes, pois trajava uma veste muito gasta, revelando a ação do tempo através de alguns rasgos e buracos e do vento com os grãos flutuantes de areia que planavam a cada passo. Estava descalço, os seus pés estavam tão secos que as rachaduras nos calcanhares se misturavam com o chão quebradiço, seus cabelos brancos e linhas na face denunciavam uma idade avançada, mas conservava certo vigor ao sustentar seus aparelhos oraculares dentro de uma bolsa de pele de boi. O velho oráculo mesmo cego virou-se na direção do rei e prostrou-se em reverência. O rei pediu que levantasse e questionou ao homem sobre os presentes que enviara. Sorrindo o ancião disse-lhe que nada daquilo lhe era necessário, pois já tinha tudo o que era necessário para bem viver, apertando ao peito a bolsa com seu instrumento divinatório.

Kwame ordenou que todos saíssem da sala e deixassem apenas ele e o adivinho ali, ordenou também que em hipótese alguma poderia ser interrompido, nem mesmo se ali estourasse uma guerra. Quando todos saíram o rei revelou sua verdadeira fraqueza, há dias vinha sonhando com seu pai, seus avós, suas bisavós cantando suas vitórias chamando por ele e, no fundo, sabia estar se aproximando de seu encontro com o fim de tudo e todos que vivem. Iku, a morte, o velho assentiu que de fato o encontro deles estava próximo, mas que nada ele deveria temer, pois, haveria de ser uma passagem tranquila e também o seria bem recepcionado no reino dos mortos. Lentamente o oráculo foi preparando o ritual de adivinhação. Começou retirando da bolsa um prato de argila, e uma espécie de bolsa contendo alguns alimentos avermelhados por conta do azeite de dendê. Saiu da sala real e dirigiu-se aos portões do palácio num canto acomodou o prato e a comida, encheu um pote com água e ajoelhou-se. Bateu palmas, entoou fortemente algumas cantigas, levantou-se e retornou ao interior da sala do trono. Lá dentro abriu a grande bolsa e retirou um ramo de folhas frescas e perfumadas, com o qual varreu toda a sala, como quem estivesse limpando algum tipo de sujidade invisível, o astral do lugar. Em seguida, retirando outro ramo, passou as folhas pelo corpo do rei com o mesmo propósito purificante. Lá de fora se ouviu um pássaro chilrear. Após purificados o ambiente e o rei, o adivinho buscou algumas cabaças com diferentes pós coloridos, alguns, o velho soprou em direções específicas, outros misturou com saliva e pintou símbolos no chão enquanto murmurava cantigas numa língua muito antiga. A atmosfera já estava ficando diferente, no recinto silêncio, o ar e a alma de Kwame estavam mais leves e uma certa sensação de conexão espiritual era experimentada pelo rei. O adivinho logo posicionou seu tabuleiro circular no chão e de um saquinho retirou algumas esferas negras, estas muito se assemelhavam a pequenos frutos de palmeira. O velho conduziu uma fervorosa oração, reuniu os coquinhos com as duas mãos fechadas, sacudiu-as algumas vezes e atirou-os no tabuleiro, a disposição das esferas eram aleatórias para o rei, entretanto, para o velho eram permissivas, então ele se dirigiu ao rei e pediu para este fazer suas perguntas ao grande oráculo.

O rei sentiu uma poderosa presença preencher a sala, fez uma reverência em frente ao tabuleiro e questionou sobre o futuro do reino e qual filho deveria sucedê-lo. Então o velho recolheu os coquinhos, agitou as mãos e atirou-os no tabuleiro. Mais uma vez uma ave passou emitindo um grasnado, quando o adivinho olhou para a configuração no tabuleiro, seus olhos opacos se arregalaram e sua voz lhe fugiu por um instante. Quando percebeu a reação do adivinho, o rei levantou e foi ajudar-lhe, mas o velho o afastou e correu para a bolsa, de lá pegou alguns ingredientes e utensílios ritualísticos em seguida, antes de sair da sala disse ao rei para não sair dali em hipótese alguma.

Francisco Grandiel
Enviado por Francisco Grandiel em 08/06/2022
Reeditado em 08/06/2022
Código do texto: T7533112
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