O milagre

Em Grão-Mogol no interior do Estado de Minas, num dos muitos municípios próximos à serra do Espinhaço, na fazenda de nome Pau D’alho, trabalhava para o Coronel Aristides o vaqueiro Tobias, de longe montado num cavalo baio era facilmente reconhecível no seu gibão de couro, tinha uma aparência imponente mas quem o conhecia sabia que ele era dos homens o mais humilde, tinha um coração de ouro, não havendo nada em suas mãos que não pudesse fazer para ajudar ao próximo, até nas partes mais longínquas das Gerais suas qualidades de homem honrado e íntegro eram conhecidas, além de tudo ele era muito devoto; estava à frente de todas as festas religiosas católicas do interior, a devoção já era assim desde rapazinho mais aprumou ainda mais sua vida casando com Rosália, moça direita da família dos Gonçalves, não demorou muito o Coronel homem reto que era ceder-lhe alguns alqueires de terra, um empregado como aquele ser-lhe-ia muito útil, pensou, já estava ficando velho e o único filho que tinha morando na capital mostrava pouco ou nenhum interesse na vida da fazenda.

Tobias era muito cioso do seu ofício ao mesmo tempo como já foi dito um católico muito devoto, o leitor talvez possa até imaginar à guisa do título que essa história vai tomar o rumo de alguma tragédia e o protagonista será agraciado no último instante pelo seu santo de devoção com um milagre, posso assegurar desde já que talvez não seja isso que vá acontecer. Mas enfim, prossigamos!

Tobias conhecia muitas passagens da Bíblia e sabia daquela parte do Evangelho que dizia no livro de Êxodo; “Seis dias trabalharás, e farás todo o teu trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do Senhor ...” Mas conhecia também o outro texto que Cristo dizia: Eu sou o Senhor do sábado... Portanto Jesus abolira o sábado, domingo portanto agora era para os cristãos o dia sagrado.

Todos os outros dias da semana o trabalho era incessante na fazenda; campear o gado, procurar rês perdida, tirar leite das vacas...

Mas ah quando chegava o domingo ele só se permitia alimentar alguns poucos animais porque esses, raciocinava, eram criaturas do Senhor, no mais era se preparar para a missa de domingo e já cedo arrepiava caminho nem esperava a mulher se arrumar, ela que tratasse de correr pra alcançá-lo, arreava o cavalo Jonas e partia impecável com sua roupa de domingo.

Quando ele atravessava o córrego das Siriemas ele apeava do cavalo e escolhia uma pedra que fosse a mais cilíndrica e que não fosse muito grande mas que coubesse na palma da sua mão, guardava-a no seu embornal pois não muito distante dali um enorme toco de uma árvore Imburana o esperava paciente.

Não se lembrava do tempo mas em algum momento o cavalo Jonas começou a cismar em não querer parar, com muito custo Tobias lançava a pedra na fenda da árvore e ato contínuo ralhava com o teimoso cavalo, todas as manhãs de domingo era assim, era como se a bocarra da imburana o assustasse mas Tobias homem de fé que era não ia se deixar levar pelas cismas de um cavalo. Cada missa ida, era uma pedra lançada no tal toco de Imburana. Tobias já se imaginou bem velhinho e mandando alguém contar quantas pedras havia lançado.

Quantas missas no final ele contaria, duzentas, trezentas, quatrocentas, chegaria a tanto? Sempre imaginava aquele “cofre árvore” de missas como um verdadeiro relicário...

Em uma madrugada de outubro de 19..., a chuva despencava dos céus de Grão-Mogol como um dilúvio, a missa do domingo daquela manhã estava sem propósito, ainda mais sabendo que a distância da igreja matriz ficava a uma légua e meia de distância, estrada que devia tá só o lamaçal, inda assim Tobias achou que ao menos ele não podia faltar, embora os céus cor de chumbo anunciasse que a chuva continuaria inclemente por todo o dia, naquele momento por um instante parecia ter estiado, era Deus, pensou, lhe dando a oportunidade para chegar com tempo na igreja, arreou o cavalo e partiu.

No exato momento em que estava prestes a atirar a pedra sobre a fenda da Imburana, o cavalo Jonas corcoveou de tal maneira que atirou violentamente Tobias ao chão, que felizmente, apesar do susto não se feriu, já se preparava pra xingar o cavalo quando percebeu uma enorme jararaca com a cabeça partida sob as suas patas. Ao analisar melhor percebera que Jonas havia sido mordido na altura da panturrilha próxima a junção da coxa esquerda. Tentou ao máximo acalmar o animal, lembrou se que sempre levava para o pároco uma garrafa de aguardente, rapidamente derramou uma parte do líquido precioso sobre o ferimento, imaginava que o álcool deteria o veneno de se espalhar, temeu muito pela vida do seu bicho que tanto estimava.

Delicadamente puxou as rédeas do seu amigo e com palavras carinhosas voltou com Jonas para casa e continuou pelo resto do dia fazendo o tratamento com Barbatimão.

No final das contas Jonas não ficara com nenhuma sequela e aquele domingo ficaria pra sempre na memória de Tobias como o domingo em que ele faltara à missa, a pedra que faltaria na contagem final, todos os outros domingos após isso nunca mais Jonas cismara com o tal toco de Imburana e sendo assim Tobias continuou lançando os seixos por sob a sua abertura. Cada pequena pedra branca lançada uma missa era assistida e assim domingo a domingo, pedra a pedra os anos se passaram e por fim a velhice lhe encontrara e com ela as dores na coluna que o impossibilitava totalmente de montar a cavalo. Àquela época seu Aristides já era falecido, seu filho Henrique já então morando na fazenda ainda lhe oferecera o seu velho Buick verde oliva para que ele não faltasse à suas missas mas foi em vão, uma vez acamado nunca mais conseguiria ir mesmo se a igreja fosse ao lado da fazenda.

Tobias sabia que sua vida estava chegando ao fim mas não queria morrer sem saber quantas missas frequentara.

Seu filho José fora encarregado de ir e contar quantas pedras havia na tal Imburana e depois informar seu velho pai, mas qual foi a sua surpresa de todos ao ouvir que ali apenas uma pedra existia, uma única, Tobias prontamente compreendeu, todas as missas que assistira de nada havia valido, a única que valeu fora a boa ação que fizera ao seu memorável cavalo Jonas.

-Se existir um céu de animais, meu Jonas estará lá, não há dúvidas disso! Exclamou Tobias.

Em seguida fez José prometer que fizesse registrar essa história, porque certamente esse era um milagre, Deus fez ver o quanto vale as boas ações e por isso São Francisco de Assis curou o seu cavalinho do veneno da cobra peçonhenta!

Epílogo

Isso aconteceu de há muito e finalmente o progresso chegara ali naquelas bandas do município de Grão Mogol e exatamente onde outrora era a fazenda Pau D’alho foi construído no seu lugar uma fábrica de refrigerantes, muitos na região que só sabiam mexer com a terra, rapidamente tiveram que aprender a trabalhar nas incríveis máquinas modernas, a estrada de terra que chegava até a fazenda, finalmente começara a ganhar o tão aguardado asfalto, as potentes retroescavadeiras em poucos instantes tornaram retas as curvas, muitas árvores centenárias tiveram que ser derrubadas e ao encontrarem certa Imburana não titubearam nem um pouco em tombá-la por terra.

Qual não foi a surpresa de todos ao ver que a árvore detinha em suas raízes uma infindável quantidade de pedras muito alvas, roliças com pouco ou quase nenhuma aresta como se esculpidas fossem, ao averiguarem melhor o tronco perceberam que existia ainda uma que ficara próxima a boca como se tivesse presa à garganta da oca árvore.

Ficaram conjecturando como todas aquelas pedras foram parar ali, ao que um engenheiro disse:

-Provavelmente era um ritual indígena idiota qualquer de alguma tribo há muito extinta...não é outra coisa que não isso!

fim

NÁSSER AVLIS
Enviado por NÁSSER AVLIS em 27/01/2023
Reeditado em 08/02/2023
Código do texto: T7705413
Classificação de conteúdo: seguro
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