ALGUÉM CHAMARIA A POLÍCIA

Não seria de qualquer jeito, nada disso. Apesar de tudo ele se achava um homem de categoria e com dignidade. Jamais, óbvio, melhor que ninguém, mas compostura sempre fora de sua personalidade. Os documentos junto com o bilhete explicando tudo e os números dos telefones, bem como os endereços dos filhos que nunca o visitavam, estavam no bolso da camisa. Esperava ser tudo rápido, limpo e, se possível, discreto.

Enquanto caminhava na direção do shopping se perguntava se faria na cafeteria, na sorveteria ou na pizzaria, embora a escolha não importava muito. Num local público geralmente chamariam a emergência ou a polícia. Ótimo, qualquer das duas certamente cumpriria seu papel, além de o transtorno ser o mínimo e com pouco alvoroço. Providenciou tudo, só não a parte relativa ao cumprimento das legalidades habituais. Ficariam a cargo dos filhos. Pelo menos isso decerto fariam por ele.

O homem sujo deitado sob a marquise de uma loja fechada, ao lado da velha mochila companheira e alguns trapos, chamou sua atenção. Parou na calçada bombardeado por reflexões súbitas. Teto para abrigo, conforto, apartamento limpo, TV a cabo com Netflix, cinco refeições diárias, dinheiro bastante na conta, cartão de crédito Premium, nada faltava. Sim, os amigos se afastaram, envelheceram, adoeceram ou morreram, seus filhos não lhe davam atenção, certo, tudo bem. Pesando na balança das coisas justas e injustas, para que lado ela pendia?

O pobre morador de rua não tinha nada, nem perspectiva nem sonhos. Passava fome, dormia ao relento era desprezado, andava sem rumo, o dia de amanhã se mostrava ingrato. Mero indigente. Quais seriam seus pensamentos? Vivia chorando e se lamentando? Infeliz? Não parecia nem demonstrava. Dormia somente. Acordaria e caminharia sem rumo até a próxima esmola.

Aquilo o despertou, percebendo quão mais pobre e miserável se mostrava do que o pobre, faminto e sujo morador de rua. Sentiu vergonha de si mesmo, repensando as pretensões planejadas. Retirou do bolso o bilhete e rasgou. Segurou a nota de cem reais que veio junto. Puxou do bolso da calça o vidrinho contendo cicuta, espatifando-o no chão. Dirigiu-se até onde se encontrava o mendigo, acordando-o. Deu-lhe a nota de cem reais e foi para o shopping tomar sorvete. Jamais ousaria tentar se matar depois dessa experiência real, vívida e humana.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 07/04/2023
Reeditado em 08/04/2023
Código do texto: T7758377
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