MORRI, MAS NÃO PERDI O BOM HUMOR

     Meu nome é Juca. Aliás, é um apelido. Eu o adotei porque meu nome, horroroso, é José Hermenegildo dos Santos. Para não ser chamado de Zé, nem de Gildo, me autodenominei Juca.

     Nome costuma perseguir a gente. Jovem, comecei a trabalhar em uma oficina e pedi que não me chamassem de Zé. Não teve muito jeito. Ficou “Zé” por uns tempos. Ao sair desse emprego, fui logo dizendo: meu nome é Juca. Sou o Juca desde então.

     A intenção deste relato é narrar peripécias de um ancião em quarentena, como tudo isso mexe comigo. Caso eu não termine esta narrativa, peço a quem a encontrar que acrescente ao final a frase: “morreu, mas não perdeu o bom humor”. É o que eu gostaria de ler escrito em minha lápide, ao botar minha cara defunta fora da sepultura. Porém, se eu morrer de covid-19, nem lápide terei.

     Uma tarde percebi que um resfriado me pegou, só que esse é diferente. Tosse, febre e dores variadas. Foi motivo de preocupação — não havia, ainda, vacinado contra gripe. Todas as vezes que passei no posto de saúde a vacina havia acabado. E está frio pra caralho aqui nesta Terra.

     O que já fiz na vida não interessa muito a esse relato, porque o foco aqui são os dias passados em quarentena. Tudo isso ficou para trás e, da família, ou das famílias que constituí, restaram lembranças, apenas. Boas e ruins. Creio que não sou boa pessoa porque desses denominados familiares apenas uma filha me procura. Abandono é sina de ancião? Não fico me lamentando, com certeza minha vida hoje é produto de minhas condutas no passado. Então, se não tenho ninguém, nem recebo visitas, é porque assim tem que ser. Com relação aos dias de quarentena, há quem diga que seja uma medida desnecessária, que a economia vai falir. Mas a economia é um ente abstrato, eu não. Sou concreto, de carne e osso, e de emoções sou um poço.

     Recebo recados dos amigos, de todos os gêneros: “fique em casa, meu querido”, recados dos irmãos: “Juca, fique em casa”; recado da única filha que me procura: “pai, fique em casa”; recado dos netos, seus filhos: “vovô, fique em casa”

     E fico em casa. Saio apenas para comprar comida. Ponho a máscara, calço os sapatos, que já ficam do lado de fora, coloco meu chapéu e luvas (devido ao frio) e saio. Na rua sempre alguém costuma dizer:

     — Velhote, não é melhor ficar em casa?

     Velhote é a puta que te pariu.

     Aquela “gripezinha”, no entanto, continua me perturbando. Tosses, espirros, febre, dores. Mas como eu raramente pego resfriado, pensei que fosse apenas devido ao frio. Estive no posto de saúde e a atendente me falou:

     — Isso deve ser só um pequeno resfriado, o senhor respira bem, então vá para casa. Aqui é mais perigoso porque temos casos de doentes com covid-19 sendo acompanhados. Voltei para casa e não recebi atendimento médico.

     Dois dias depois voltei ao posto de saúde porque minha “gripezinha” havia piorado. Dessa vez fui atendido e fiz o teste. Positivo. Puta que pariu, estou covidiado (pelo menos inventei palavra nova). E agora? Solidão é o que me aguarda. O que não é fácil para mim, com mais de sessenta, e quase setenta anos na cacunda.

     Mesmo assim tento manter meu bom humor e minha rotina. Leituras, escrituras, e arrumações do espaço doméstico. Agora tem um elemento novo: o vírus. E, com ele, febres, dores, tosses, espirros, corpo pedindo cama e eu negando. A coisa ficou mais feia do que aparentava antes. Os sintomas do famigerado estão me assustando e devo ir ao hospital. Irei hoje, sem aquela certeza de que voltarei. Colocarei em minha mente que, sim, estarei de volta. Sempre fui um otimista inveterado, e não será agora que deixarei de sê-lo. Provavelmente ficarei na fila de doentes que aguardam atendimento no hospital, verei gente entrando e saindo, mortos e vivos, e gente chorando alto e baixo. Então preciso desesperadamente de minha tranquilidade, de minha calma conhecida para lidar com situações de estresses.

     O tempo é frustrante? Dele só fica a esperança, exatamente quando estamos no escuro e percebemos que a luz da manhã vai chegar a qualquer momento e, como pássaros de madrugada, levantamos e nos preparamos para alçar voos. Só levamos conosco nosso passado, ele gruda em nós como eco de nossas falas, nossos gritos. Como eco, não como peso. Eco não pesa, apenas sussurra em nossos ouvidos. E assim podemos sair desse mundo escuro como os contos de Edgar Alan Poe.

     Vieram me buscar para me encaminharem à sala de UTI (Unidade Terminal dos Idosos) para ser entubado, em coma induzido, e usar o respirador mecânico, pois meu estado se agravou, mas eu ainda tenho uma chance. Dei uma pausa no relato (será que vou terminá-lo?) mas insisto na frase-epitáfio, caso eu morra: “morreu, mas não perdeu o bom humor.”

     Como sou otimista, escrevo ainda: até breve, vida. Alguns filósofos, pós-modernos, líquidos, dizem que vemos as coisas de forma sequencial porque assim aprendemos. Que a simultaneidade existe, que a morte é um fato da vida. No entanto, se eu morrer desta vez, que esse relato seja parte de meu legado. Morro, mas não perco o bom humor.

     Até breve.

 

 

Paulo Cezar S Ventura
Enviado por Paulo Cezar S Ventura em 29/04/2023
Código do texto: T7775594
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