Rio Paracatu por Paulo Augusto Pereira


A Lenda Do Rio

-Quando sopra este vento e encrespa as águas do rio, boa coisa não é. Senti até um arrepio. Temos que rezar pra espantar os maus espíritos e as energias negativas. Que Deus proteja nossa família, meu filho.

-Vovô, sempre ouço o senhor maldizer este vento e rezar quando ele começa. Mas o senhor nunca me contou porque este vento é assim tão ruim.

-São coisas antigas. Acontecimentos nefastos.

-Conta pra mim, vovô. Já tenho quatorze anos e sempre fico curioso.

-Eu sei o que anda de boca em boca. Contam que foi assim que aconteceu.

Lá pelo início do século passado, coisa de 1908 mais ou menos, esta cidade ainda era muito pequena. A vida aqui sempre girou em torno do rio. Muitos pescadores viviam do que tiravam do rio, as estradas eram muito ruins e o melhor meio de transporte para outras cidades eram as embarcações, as mesmas usadas nas pescarias. Muito tempo depois veio a balsa que por muito tempo serviu à população.

O rio é a vida desta cidade, mas muitas vezes foi a perdição de muitos.

Naquele tempo, muitos casamentos eram arranjados. Muitos queriam um bom casamento para suas filhas. Quando algum fazendeiro ou comerciante rico colocava os olhos em cima de uma bela donzela, o pai dela mais que depressa alinhavava o casório com medo de perder o pretendente. Muitas mocinhas se casavam antes mesmo dos dezessete, dezoito anos.

Foi assim que o Coronel Aristides botou os olhos na bela e doce Bárbara de apenas quinze anos. Ele ainda solitário com seus quase quarenta anos, homem forte e determinado que tocava com mãos de ferro sua fazenda, caiu de amores por aquela donzela tão linda e delicada.

O pai de Bárbara mais que depressa aproveitou a oportunidade de fazer de sua filha a esposa daquele homem que tinha uma bela fazenda e uma fortuna invejável.

Acontece que a sonhadora Bárbara, e isto ninguém sabia, era apaixonada por seu primo. Ele era um jovem bonito e elegante e trabalhava com seu pai em um comércio na cidade. O primo cortejava Bárbara discretamente.

Quando ela soube que seu pai pretendia casá-la com o coronel ela disse que não queria, chorou, ficou desesperada. Mas seu pai nem se importou. Era ele que mandava e pronto.

Um ano depois Bárbara e Coronel Aristides se casaram em uma cerimônia linda. A festa varou a noite e o coronel mostrava toda a sua alegria. Aquele homem carrancudo, sério e sempre com cara de tristeza, sorria e olhava para sua jovem esposa com olhos de fascinação e paixão. Bárbara era só tristeza e chorou durante toda a cerimônia.

O casal foi morar no casarão da fazenda, com todo o luxo e conforto que podia haver naquela época.

Bárbara era tratada como uma rainha. O coronel, homem mesquinho e avarento, abria a mão e enchia sua jovem esposa de presentes. Vestidos, jóias, sempre à altura de sua rainha. Era um homem apaixonado e fazia tudo para cativar o amor da esposa e vê-la feliz.

Mas Bárbara não sentia qualquer amor por aquele homem que podia ser seu pai.

Dois anos depois nascia o primeiro filho do casal. O nascimento trouxe alguma alegria na vida de Bárbara. O coronel se sentia o mais feliz dos homens. Fazia mil planos para seu primeiro herdeiro.

Bárbara no entanto estava cada vez mais triste e algumas vezes adoecia de tanta tristeza.

Quando seu segundo filho nasceu ela estava muito fraca e quase morreu.

O coronel moveu céus e terra pra salvar a vida de sua adorada esposa.

Quando ela já estava melhor ele foi conversar com ela:

-Minha amada, o que posso fazer pra que você se anime e tenha alegria. Tudo que eu quero é ver você feliz. Sinto por você o mais sincero e puro amor e vê-la assim me deixa pra morrer.

-Você quer mesmo me ver feliz?

-Você sabe que sim. É tudo que eu quero.

-Liberte-me.

-Como?

-Liberte-me desse casamento que eu nunca quis. Você sabe que eu jamais amei você. Eu vivo como se fosse uma prisioneira, Este casamento pra mim é como um fardo muito pesado e difícil de carregar. Eu sou tão jovem, não mereço estar presa a um homem que não amo, a quem me entrego por obrigação e como se fosse um castigo.

Pela primeira vez na vida Aristides chorou. Ele não disse nada. saiu com uma grande tristeza nos olhos.

Cada vez mais ele tentava conquistar o amor de Bárbara com presentes e luxo. Como se não soubesse que o coração de uma mulher não se conquista com bens materiais.

Alguns anos depois, quando o pai morreu, Bárbara disse a Aristides que queria se separar dele. Que iria embora com os filhos.

-Eu não vou admitir que você vá embora, não vou permitir que jogue meu nome na lama. Existe outro, não é?

-Não existe ninguém, só quero me libertar deste casamento que me sufoca.

-Eu não aceito me separar de você.

-Prefere viver com uma mulher que não lhe ama?

-Eu amo por nós dois. E não posso viver sem você. Não imagino minha vida sem você.

-Que amor é esse que prefere me ver infeliz a me libertar?

-É todo amor do mundo que está em meu coração.

Muitas outras vezes ela tentou se separar. Ele sempre ameaçava separá-la dos filhos.

Numa ocasião ela adoeceu. Esteve por muitos dias acamada.

-O que eu posso fazer pra que você tenha um pouco de alegria?

-Eu já venho dizendo há muito tempo. Liberte-me deste casamento.

-Eu vou libertar você. Aguarde mais um pouco. Vê-la feliz é mais importante que tudo.

Ela sorriu e pensou que finalmente iria embora daquela casa, recomeçar sua vida.

Dias depois Aristides saiu em sua embarcação para resolver alguns negócios.

A noite caiu e ele não voltou. E amanheceu. E mais um dia passou. Nada do coronel.

Alguns pescadores encontraram sua embarcação vazia.

Dias depois localizaram seu corpo no rio.

Passado o funeral, Bárbara encontrou uma carta deixada por ele.

 

“Minha amada Bárbara, eu te amo mais que minha própria vida. Vê-la infeliz está acabando comigo. Parece que você me odeia e só quer estar longe de mim.

Fiz tudo que podia pra vê-la feliz. Amei com um amor sincero e fui fiel a este amor.

Desejo que você consiga ser feliz tanto como eu me senti feliz com você.

Não sei viver sem você. Prefiro a morte.

Aristides.”

 

Bárbara chorou e se desesperou ao saber que foi a causadora dele dar fim à própria vida.

Ela se enclausurou na fazenda e não saía mais de casa. Nunca se permitiu ser feliz.

Viveu por seus filhos e pela fazenda que Aristides tanto amava.

Não foi feliz no casamento e não se permitiu ser feliz depois de ficar viúva, carregando sempre a culpa pela morte do marido.

Surgiu a lenda que o vento que sopra forte era Aristides tentando resgatar sua amada.

E toda vez que o vento soprava acontecia algum acidente ou alguma pessoa morria na cidade. Alguns se afogaram nestas noites de vento, tendo seus barcos virados.

Até hoje quando o vento sopra a cidade entra em oração para exorcizar este fantasma que ronda por aqui.

Muitas vezes ainda acontece alguma morte ou alguma tragédia nestas noites de vento.

Esta lenda passa de geração em geração e chegou até aqui.

-E eu vou levar esta lenda pra frente, vovô. Mas o que aconteceu com Bárbara?

-Morreu já velhinha e rodeada por seus filhos e netos.

-E o primo?

-O primo viveu sua vida. Casou, teve sua família, mas ninguém sabe se foi feliz. Dizem que morreu chamando por Bárbara.

-Uma história triste, não é, vovô? Tudo podia ter sido diferente.

-Filho, o que o destino traça não tem recurso. O que é de sorte, só Deus ou a morte…

 

 

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 13/05/2023
Reeditado em 20/05/2023
Código do texto: T7787402
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