A Olfação

(ou A falta dela)

Otávio foi um jovem mimado, muito rico e abastado, que vivia com sua família em uma área nobre da zona norte paulistana. Desde cedo, frequentava eventos bastante comentados entre as sociedades “da alta” e que acabavam se tornando manchetes em jornais - mais pelos escândalos oriundos das reuniões que pelo glamour daquela gente toda. Cresceu nesse ambiente o Otávio: a precisar demonstrar às demais pessoas que ele era mais do que realmente era; não que houvesse alguma exigência intelectual em sua relação, vide o fato de que seus pais pouco ou quase nada fiavam-se à leitura. (Quando o faziam, é claro, era para averiguar se seu nome estava em alguma manchete de jornal.)

Um dia, contudo, Otávio perdeu a olfação. (Aos leigos, a capacidade de sentir o maravilhoso cheiro da Terra.) Despertou de sonos tranquilos, levantou-se, lavou o rosto, assistiu à sua face cujas linhas eram mais traços de sono que de suor laboral - este último que não vem ao caso - e percebeu, ao se entupir de seu barato L’Occitane, que não conseguia sentir o forte olor da fragrância.

Desesperado, dirigiu-se aos pais prontamente.

- Não consigo cheirar!

- Já te falamos para parar com esse negócio de pó - replicou o pai, reticente.

- Estou dizendo que não consigo sentir cheiro, cheiro algum! - falou, a alterar a voz.

A mãe, que passava um creme recomendado pelo médico após a septuagésima intervenção cirúrgica plástica, parou de olhar o espelho e vislumbrou o filho.

- Você perdeu um sentido - exclamou, teatralmente.

E foi aquela comoção: levaram-no a dezenas de médicos, centros espíritas, ciganos, terapia holística. Nada. Nenhum sinal. Sua olfação esvaíra-se tal como o nariz do major Kovaliov - que largara sua função para tornar-se funcionário público.

Quando a vida voltou ao normal, com a exceção da olfação de Otávio, ele pôde frequentar os mais variados lugares sem sentir o cheiro - e pedira (na verdade suplicara) aos pais e empregados da casa que mantivessem aquele segredo para sempre. Jocoso, seu pai era sempre oportuno em piadas de mau gosto.

- Nunca mais poderá sentir um perfume de mulher - brincou, longe da mãe.

- Por essa razão nunca vi àquele filme de mau gosto - replicou Otávio - que, de fato, não conhecia nada da supracitada obra de Martin Brest.

E foi para uma única mulher que Otávio abriu seu coração: Dora, seu eterno amor juvenil do colégio, a quem parecia se compadecer de Otávio e que também parecia não lhe importar a ausência do olfato do pretendido. Casaram-se e foram morar juntos.

Um dia, após uma cálida e embriagada noite de amores em um apartamento da família de Otávio no centro da cidade, o corpo de Otávio fora encontrado morto por sobre a cama. Dora, sua eterna Dorinha, havia propositalmente deixado o gás da cozinha a vazar pelo pequeno apartamento e fechara todas as passagens de ar da casa enquanto Otávio, desmaiado pela

quantidade de uísque que havia tomado, descansava pela cama. Mesmo lúcido, sua olfação não perceberia.

Como o vazamento de gás era reincidente naquele prédio, a polícia fechou o caso. Dora, inocentada, travou uma briga na Justiça com os pais de Otávio e, por fim, ganhara.

Menos de um ano da morte do marido, Dora casou-se com Alberto -também com um ex-colega de colégio e que detestava Otávio durante a juventude que, coincidentemente da noite para o dia, ficara cego. Ele morrera três meses depois do casamento - ao cair da escada e quebrar o pescoço. O motivo: sempre andava sem bengalas e seu cão-guia.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 31/05/2023
Reeditado em 31/05/2023
Código do texto: T7801759
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