E se ...?

Sabe aquele sentimento sem nome que nos perturba nas horas mais inapropriadas, e que tira o nosso sossego pelo simples fato de nunca nos dar respostas concretas? Não? Sabe sim! Aposto que já aconteceu com você mil vezes, ou até mais. Esse sentimento sou eu, ou melhor, não sou realmente um sentimento, sou mais uma brincadeira do seu consciente. Uma ansiedade de viver várias vidas, uma necessidade de saber todas as possibilidades antes de tomar uma decisão.

Então, eu sou o "e se", muito prazer! E hoje vou contar uma história. E para não perder minha essência, contarei duas versões, e não direi qual é a verdadeira. Caberá a você escolher uma, e a outra será apenas o fruto de uma imaginação ansiosa. Vamos lá então.

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Depois de seis anos de casamento, Mariana roía a unha do indicador esquerdo enquanto olhava para o palitinho encharcado de urina que determinaria o seu futuro. Estava preparada para ser mãe? Era a hora certa? Queria mudar a rotina já tão estabelecida e apreciada? Não sabia a resposta para nenhuma dessas perguntas.

De qualquer forma, eu não entro nessa história ainda. Na verdade, entro, muitas vezes, sobre muitas coisas, mas não é essa a história que quero contar.

A gravidez foi tranquila, sem nenhum susto e quase nenhum dos incômodos próprios. Mariana e Jairo, depois de conformados, ficaram extasiados e fizeram mil e um planos para o bebê, mesmo sem saber nada sobre ele ainda. Sabiam só o nome. Júlio. Conversavam com ele e colocavam fones tocando música clássica mesmo com ele ainda na barriga da mãe. Foi um tempo tranquilo.

Nossa história começa no parto. Aí ela se divide na verdade e no "e se". Porque um pequeno acontecimento, pode mudar tudo. Ou não.

Mariana estava preparada para o parto. Leu tudo o que tinha pra ler, viu todos os vídeos que tinha pra ver, a maioria só serviu para infundir mais o terror em sua imaginação excitada, fez tudo que tinha que fazer. Estava pronta para tudo.

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Mas não estava preparada para o que aconteceu. Nada prepara os pais para uma falha na hora do parto que transforma seu filho típico em um bebê atípico, diagnosticado com paralisia cerebral. Nada prepara alguém para isso.

O bebê foi direto para a UTI, passou por diversas intervenções, resistiu a muitos procedimentos e foi liberado para ir para casa. Para viver da melhor maneira que fosse possível.

Mariana e Jairo não sabiam o que fazer. Como lidar com um bebê tão pequeno que precisava de tantos cuidados para se manter vivo?

A exaustão se tornou constante e a culpa por não fazer mais e melhor, e principalmente por querer outra realidade. Outro bebê. Nenhum bebê.

Mas o ser humano é dotado de um incrível poder de adaptação e eles se adaptaram ao filho atípico e à paternidade atípica. O terror deu lugar a um amor selvagem. O medo deu lugar a uma coragem absurda. A rotina deu estabilidade aos nervos e a vida continuou. Porque sempre continua, não importa o que aconteça, e por mais clichê que seja, é a verdade: o que não te mata, te fortalece.

Júlio foi crescendo, se desenvolvendo, sorria como todo bebê, tinha as coxas mais roliças e os cílios mais compridos que os pais já tinham visto. Balbuciava alguns sons, que os pais teimaram ser palavras.

Visitou o pronto socorro e ficou internado mais vezes que outras crianças, muito mais, na verdade. Fez uso contínuo de mais remédios que algumas pessoas usam na vida toda. Não aprendeu a andar, nem a falar, pelo menos não de um jeito convencional, mas sua cadeira de rodas, totalmente equipada, tinha um aparelho que ajudava o menino a se comunicar. Onde ele apertava ícones mostrando o que precisava.

Mariana se dedicou dia e noite ao filho que amava mais do que tudo na vida. E Jairo depois do temporal inicial, voltou ao trabalho onde passava quase todo o seu tempo. Ele não era um pai horrível, ou ausente. Longe disso. Apenas precisava trabalhar o máximo que pudesse, já que as despesas com o filho eram absurdas e o apoio que recebiam do governo não fazia uma diferença significativa, e Mariana não conseguiria trabalhar em mais nada além da manutenção da saúde e do bem estar da criança.

Apesar de tudo, Júlio era uma criança feliz. Por não conhecer outra vida, estava satisfeito com a que tinha. Era louco por cachorros, e Mariana descobriu de uma forma inusitada, em um dia que estavam no parque tomando sol e um cachorrinho foi correndo na direção da cadeira de rodas e antes que ela pudesse impedir, o cão já estava lambendo o rosto de Júlio, que ao invés de ficar assustado, como a mãe imaginava, travou os braços ao redor do cachorro e não queria mais soltar, e gargalhava de felicidade enquanto o cão o lambia.

Depois de pedir a opinião de todos os médicos, pediatras, psicólogos e terapeutas que tratavam do menino, decidiram arranjar um cãozinho para ele, que logo se tornou seu melhor amigo, o único, além dos pais, que interagia com ele de forma natural e sincera.

A fase escolar foi muito complicada para Mariana. Mais para ela do que para o filho. Para ele era tudo novidade, e ele não percebia o estranhamento das crianças nem o despreparo dos professores, ele só via a oportunidade de viver coisas diferentes e conviver com outras crianças, mas a mãe via e sentia tudo.

Mas isso também foi absorvido e manejado da melhor maneira possível, até que as crianças se acostumaram e passaram a brincar com ele, que se tornou o centro das atenções, e o corpo docente se preparou e tornou a escola um lugar inclusivo, não só para Júlio, mas para possíveis outros alunos atípicos.

Júlio mostrou também um gosto bem peculiar para música, e não foi para aquela que os pais colocavam para ele ouvir desde que estava no útero, ou quase constantemente depois que ele nasceu, e sim para o hip hop. Passava horas vendo vídeos onde os dançarinos rodopiavam. E ele sorria e girava a cadeira no ritmo certo.

Mariana procurou sem parar uma escola de dança que aceitasse seu filho, que fosse acessível a ele. Quase desistiu, mas acabou encontrando uma escola incrível, onde Júlio fez novas amizades que tinham os mesmos interesses que ele. O que é essencial na adolescência, típica ou atípica.

Eu não tive muito mais contato com a Mariana. Ela aprendeu que viver a vida que tinha, sem questionar o que teria se alguma coisa fosse diferente, era muito mais fácil, e trazia uma paz enorme.

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Mariana conseguiu o parto que sempre sonhou. Dor moderada, tempo moderado, nem muito longo, nem muito rápido, tudo saiu como o planejado e assim que Júlio veio ao mundo, foi colocado nos braços da mãe, que orgulhosa, dele e de si mesma, contou os dedinhos das mãos e dos pés para ter certeza de que ele era normal.

Foram para casa no dia seguinte, depois de fazer mais de mil selfies, ainda sorrindo de orelha a orelha, efeito da ocitocina recebida no parto. Mas o barato logo passou e os pais de primeira viagem se viram sozinhos com um serzinho que não conheciam ainda e que só chorava, dormia, mamava e defecava.

O primeiro mês foi muito cansativo, quase não dormiram. Mariana só queria poder tomar um banho demorado sem pensar ter ouvido o bebê chorando. E Jairo queria voltar do trabalho sem ter que segurar o bebê até que a esposa descansasse. Mesmo que ele também estivesse cansado.

As primeiras vezes foram sempre emocionantes! O primeiro sorriso, a primeira vez que virou na cama sozinho, a primeira noite de sono ininterrupto, a primeira vez que sentou sem apoio, a primeira vez que engatinhou, que falou mamã e papá. Tudo celebrado e devidamente registrado.

Mas nem tudo foram flores, a primeira vez que Júlio ficou doente foi bem tensa. Só havia passado por alguns poucos resfriados e precisar ser internado com bronquiolite foi aterrorizante para Mariana que não sabia como tinha sobrevivido àqueles dias sombrios e terríveis.

Mas logo o sol voltou a brilhar e Júlio foi crescendo e se desenvolvendo como toda criança normal. E a casa foi se enchendo de risos e brinquedos espalhados por todos os lugares.

E que trabalho dava para cuidar de uma criança tão ativa! E ainda dar conta da casa e do trabalho em meio período que Mariana fazia por amor e não por necessidade. Já que o salário de Jairo era ótimo e dava para cuidar de todas as despesas da casa.

Vivia cansada e pensava seriamente em tirar alguns dias de folga da família, viajar com as amigas, passar um final de semana sem pensar em nada.

Viu uma influencer falando sobre a importância de normalizar "amar os filhos mas odiar a maternidade" e ficou pensativa. Chegou a se identificar, mas pensando seriamente, chegou a conclusão de que era impossível amar o filho e odiar cuidar dele. Porque sabia que o amor não era só um sentimento, era ação. Amar é agir. E o ato de amar o filho é demonstrado no cuidado diário com ele, o que define a maternidade.

Depois dessa profunda reflexão, passou a cuidar do filho com uma alegria e paixão redobrada, principalmente nas pequenas coisas. Porque sabia bem fundo em seu coração que podia ser muito pior.

Assim que Júlio aprendeu a falar, pediu um cachorrinho de presente. Ele nunca tinha visto nenhum ao vivo, só nos desenhos. Mesmo assim já sabia que queria muito, que precisa ter um. Os pais foram para um abrigo e deixaram o menino escolher qual quisesse. Nem havia saído das fraldas ainda e já podia decidir qual cachorro teria. Acabou escolhendo muito bem. Um vira lata branco e preto, ainda filhote, que segundo o gerente do abrigo, seria de médio porte.

O cãozinho se apaixonou pelo menino e não desgrudaram um do outro. Faziam tudo juntos, corriam e brincavam e Júlio até dividia sua comida com ele. Foi seu melhor amigo por anos, até que ele entrasse na escola e fizesse amigos humanos, que não eram muito melhores que o amigo canino.

Júlio descobriu cedo na vida do que gostava e no que era bom. Passava o tempo todo com um fone no ouvido, fazendo todo tipo de piruetas e malabarismos que a dança do hip hop exigia.

No recreio e nas aulas de educação física, era o centro das atenções, todos se juntavam em volta dele para ver os movimentos irados que ele conseguia fazer. A música dentro dos fones não chegava até os outros, então todos observavam e aplaudiam a dança silenciosa do garoto. Mariana foi chamada na escola, não para que fizesse Júlio parar de dançar e estudar mais, mas para que ela fosse informada do talento promissor do filho e incentivada a colocá-lo em uma escola de dança.

Mariana quase morreu de orgulho! Não imaginava que seu filho fosse tão especial. Ela sempre quis que ele fosse feliz, assim como todas as mães. A felicidade de um filho é o que as mães sempre sonham alcançar, seja como for.

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Então, querido leitor, minha história chegou ao fim. Conseguiu identificar qual é a real e qual é o "e se" ? Parece fácil e até óbvio, mas não é. Porque mesmo que uma quisesse ardentemente a história da outra e essa outra morresse de medo da história daquela uma, eu passei pela cabeça das duas, de uma com desejo e da outra com horror. Mesmo que, de qualquer forma, tanto o desejo ardente quanto o medo profundo, não puderam me tornar real. Porque no final das contas, eu sempre serei só uma pergunta chata, inapropriada e terrível que nunca terá uma resposta concreta.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 29/06/2023
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