A Menina

Era uma rua simples de um bairro de classe média baixa, com casas dos dois lados e poucas árvores. Não havia nenhum prédio. Algumas casas eram sobrados com garagem na frente. A maioria com um carro e outras poucas com dois. Algumas eram antigas de portão baixo e outras eram térreas com um grande quintal na frente. O sol ainda brilhava, mas em breve estaria se pondo. Deveria ser por volta das cinco da tarde. Apesar do horário, quase não passavam carros. Crianças brincavam na porta de casa ou na rua. Meninos jogavam futebol e a uma certa altura era possível avistar meninas jogando queimada. Um pequeno grupo sentado na calçada brincava de mês e duas garotas estavam sentadas na guia trocando papéis de carta.

Enquanto andava por aquele lugar estranhei, pois o ambiente, os carros que via e as brincadeiras infantis se pareciam muito com a década de oitenta. Era como se aquela rua houvesse parado no tempo. De repente fui atingida por uma bola e uma menina ruiva, de tranças, olhos cor de mel e sardas veio até mim.

_ Desculpa moça. Estamos jogando queimada e sabe como é, às vezes a gente se empolga.

Devolvi a bola a ela.

_ Magina, isso acontece.

Ela jogou a bola de volta para as colegas que continuaram jogando e começou a puxar assunto comigo.

_ Já jogou queimada? Você gosta?

_ Quando eu tinha sua idade, e gostava muito.

_ Eu também gosto. Mas a brincadeira que mais gosto é de mês.

Me abaixei para ficar de sua altura.

_ Verdade?

_ E sabe o que sempre falo quando me perguntam o que quero do mundo?

_ O que?

_ Que eu quero escrever histórias bonitas como as que minha mãe me conta. Sabia que já sei ler e escrever?

_ É mesmo... Que legal! Sabe, minha mãe também me contava histórias bem bonitas antes de eu ir dormir.

_ Eu vou ler o que está escrito ali:. – ven-de-se ge-la-di...-nho. Vá-ri-os sa-bo-res.

Eu bati palmas feliz.

_ Não é que você sabe mesmo...

_ Fui a primeira da minha turma a conseguir. Sabe moça, minha mãe sempre fala que se a gente se esforçar bastante consegue fazer tudo o que quer. Agora eu quero tirar as rodinhas da minha bicicleta e vou conseguir...

A minha vontade era falar que a vida é dura, que temos de por o pé no chão e viver a realidade. Nem tudo é tão simples como andar de bicicleta sem as rodinhas. Sonhos não enchem barriga e nem sempre era possível realizá-los. Mas não poderia falar isso para uma criança. Na verdade, olhando para aqueles olhos cor de mel só consegui dar um sorriso franco e deixar ela continuar.

_ Sabe uma coisa que minha professora Beth fala...

Sacudi a cabeça em negativa.

_ Que a gente nunca sabe se vai ou não conseguir uma coisa se não tentar.

Naquela hora gelei. Não é que ela tinha razão. Aquela menina havia derrubado minhas crenças em poucos minutos de conversa.

_ É, pode falar para ela que ela tem razão.

Eu olhei mais fundo naqueles olhos e foi então que a reconheci. Aqueles olhos profundos e brilhantes, aquelas sardas, o corpo esguio e os cabelos vermelhos em tranças compridas... Não pude acreditar.

Ela percebeu meu olhar de espanto.

_ Você não lembrava de mim.

_ Não fica triste, agora eu sei quem você é...

Naquele momento tudo passou a fazer sentido: as casas, os carros e as brincadeiras antigas. Aquela menina era eu mesma aos sete anos de idade, otimista e cheia de sonhos.

Ela me olhava cabisbaixa agora, chorando.

_ Como se esqueceu de mim... como...

A abracei forte e por um instante pareceu que ela havia se acalmado. De repente uma coisa estranha começou a acontecer. Aquela criança foi entrando dentro de mim, passando a fazer parte do meu corpo. Ela sumiu na minha frente e agora estava completamente dentro de mim. Olhei para baixo com espanto.

O alarme do celular começou a tocar. Acordei bufando. Havia sido apenas um sonho. Levantei meio a contragosto e pensei: “hoje será mais um dia de trabalho.” Porém ao passar pelo espelho vi meus cabelos ruivos soltos e desgrenhados, minhas sardas e os mesmos olhos cor de mel agora um pouco mais brilhantes. Foi aí que percebi: “não seria mais um dia comum, a partir de agora seria diferente porque trago comigo aquela menina. E eu prometo, nunca mais esquecerei dela.”

AninhaP
Enviado por AninhaP em 13/07/2023
Código do texto: T7836193
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