O aceno.

Os dois amigos passeavam no meio da noite, oscilando a companhia entre o silêncio e rápidas palavras. Por mais que andassem, não conseguiam se afastar dos borrões dos prédios; era preferível, portanto, os jardins, que tinham alguma lembrança de liberdade, mesmo com os paredões negros bruxúleos no horizonte.

A mulher perguntou: — Mas o que você fez, na hora?

O homem manteve-se reto e alto, olhando para frente, demorando levemente com a resposta. Ventinho frio e alguma ave misteriosa, soltando, durante voo, em três tempos um "fi", sendo o do meio um pouco mais breve. O homem se distraía facilmente, ficou tão fascinado pelo canto efêmero e fugídio que esqueceu de responder sua amiga. Levou-a para a ponte, e lá pararam, lado a lado ainda, a observar o riacho. Esse, digo, seria quase imperceptível se não refletisse o luar, seria, também, um escuro só com a terra. Por alguma razão, firmaram essa quietude com a não-imagem. Penso se achavam aquilo profundo. Bons minutos ali, até cortarem o calar, e foi o homem: — Vemos o que não é mostrado?

Ele era enigmático. A mulher bem ouviu, pensou em devolver o silêncio anterior, mas a pergunta foi interessante.

— Pensas nas correntezas?

— Seria possível perceber se um cadáver passasse, agora mesmo, diante de nós, por esse rio?

— Escuro assim... creio que não, apenas se fôssemos ótimos observadores.

— Você se considera?

— Bom, costumo ver o que não há.

— Bem diferente do que ver o que não é mostrado.

— Sim... — o sorriso foi flagrante — uma sutil diferença.

Dado os momentos, pareceu o passeio ter encontrado seu ponto de saciedade. Ambos retornaram para suas residências, calados.

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Durante a madrugada, era comum passar desses programas infames de mortes e demais brutalidades. Era um chamado 'Depois do último suspiro', cujo apresentador, com uma voz bem grave, e sempre com o semblante muito fechado, tons de coveiro, apresentava a recente notícia que chocava a cidade: "Mulher é encontrada boiando nas margens do rio Esa. Alguns pescadores, já pela manhã, acharam-na encostada na margem, já muito pálida e nua. Nenhum sinal de violência foi contastado pelos investigadores. O caso é ainda mais surpreendente por se tratar de Annelie Linoux, a famosa Madame Pur, talvez a mais prestigiada atriz de teatro do nosso tempo!"

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Se um vulto havia que seguia como o vento pela cidade, Margeé, a mulher, mantinha sua noite em papéis e quebra-cabeças. Mirou a pequena janela, porém, para ver, costume de seu cansaço, o ilustre rio abrilhantado pelas estrelas, diamantes.

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Quando chegava o fim do dia, Margeé se dirigia para frente do bistrô, onde encontrava Antoine, o seu amigo. Dedicavam esse tempo para a prática peripatética já dita. Era regra: ela, quando quisesse, tomava a atitude de começar o diálogo falado, aí era que Antoine, mais afeito ao ouvir, dizia algumas coisas. A relação era muito bem delimitada, mas o tempo... o tempo é, de fato, um transformador. Ou o intermediador? Margeé vestia preto, ele também, e o céu parecia querer enublar-se. Seria uma lástima: ficara a proposta de irem à beira do Esa ver o poente. Ele propôs em cima: e que problema há? Foram.

Foi um bom espetáculo, pois o céu, curiosamente, tomou manchas cinzentas, enquanto o arrebol parecia uma onda no céu. E toda a atmosfera assemelhava ao ciano, de azuis distintos. O mais bonito era o sol, que diminuto estava, mas muito vermelho. Do rio só se via um reflexo, finíssimo, também daquela cor. E digo, que Margeé via fantasmas na outra margem, mas não pessoas, via casas. Antoine recebeu a proposta dela: queria muito navegar por aquela água e tocar o sol. Coisa essa não havia no acordo (digo, no contrato). Ele se permitiu, porém, sem deixar transparecer nem uma fagulha de repreenda àquilo.

Havia um barquinho muito negro ali, disponível, e somente eles. Subiram. Margeé foi quem remou, não lidando com esforço, apenas com a vontade infantil de si mesma.

Antoine disse: — Os fantasmas, ainda os vê?

— Talvez, mas agora estou a ver outra coisa.

— O quê?

— O raio, que é o que quero.

Antoine calou-se. De vez em quando sentia que algumas de suas perguntas a irritava, entretanto sempre soube que jamais chegou a causar nela algo realmente considerável nesse sentido, pois deixara bem claro sua voz não ser dele propriamente, mas da própria Margeé, a Margeé submersa. Ele examinava-a, realmente empenhada em levar o barco para a viva mancha vermelha. Deu-se conta que, em razão daquela perspectiva, a qual nunca tivera, via toda a silhueta de sua amiga. Pior: os antebraços expostos, devido ao ato de remar.

Antoine calou de um jeito diferente, isso pôde perceber. Muita coisa ele percebia, com efeito, contribuições de seu ofício. Estava num leve dilema: aquele exato acontecer, deveria ir para qual dos relatórios, o seu pessoal, ou o outro? Certamente, levar em consideração a maior possibilidade do apego com o cliente deveria ser levado em consideração, assim como o digressões espontâneas. Nessas distrações, foi que se deu conta ter Margeé passado do ponto que queria. Quis avisá-la, ao ver o reflexo solar passando, mas, ao olhar para ela, percebeu estar totalmente perplexa numa visão: logo ali em frente havia outro barco, no qual sorria a figura sorridente da atriz morta, acenando como em cena.

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revisão em breve

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 29/09/2023
Código do texto: T7897239
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