A barreira rompida

Uma sensação de culpa e embaraço perseguiu Jant ao longo do dia. Devia ser tão perceptível, que a própria Frauke Wassenaar lhe perguntara em dado momento, se havia algo de errado com ela.

- Você está com uma cara - observou, muito séria.

- Está tudo bem, senhora... eu só... tive uns sonhos estranhos na madrugada - desconversou Jant.

A bibliotecária lançou-lhe um olhar mais simpático:

- Não seria a primeira. Há muitas energias circulando por Hegestap; nem todas positivas, é verdade. Mas você vai aprender a lidar com elas, é só uma questão de tempo.

Jant fez um gesto de cabeça, mas não se atreveu a dizer palavra.

Esperou com impaciência pelo fim do expediente para só então ir atrás de Sieu, a qual encontrou depois de alguma procura, arrumando a mesa do salão de jantar.

- Posso falar com você? - Indagou súplice, diante da criada.

Sieu ergueu os olhos da toalha de linho que havia acabado de ajustar e encarou Jant, em tranquila expectativa, sem animosidade.

- Estou ouvindo, senhorita - declarou.

Jant mordeu o lábio inferior.

- Vim pedir desculpas... queria que me perdoasse... pelo que fiz hoje de manhã.

Sieu pareceu surpreender-se com o pedido, mas depois balançou afirmativamente a cabeça.

- Está bem. Eu não fiquei magoada... só corri porque apertou o meu braço, e não é algo a que estou acostumada.

Jant sentiu as faces em chamas.

- Perdão, Sieu. Juro que não queria te machucar... eu só estava atrás de respostas.

- Compreendo - assentiu a criada, olhando ao redor como que tentando se certificar de que mais ninguém estava ouvindo. E baixando a voz:

- Mas aqui não é o local, nem o momento para procurar por respostas. Quando eu for levar o seu chá, trocamos um dedo de prosa.

- Promete? - Questionou Jant, juntando as mãos.

- Prometo - afirmou serenamente a criada.

* * *

Duas batidas. Jant, vestida com um confortável pijama de flanela, abriu a porta e deparou-se com Sieu, carregando uma bandeja de prata com a xícara de chá e um prato de stroopwafels.

- Boa noite, senhorita - saudou-a Sieu, no seu tom habitual alegre e disposto. - Posso entrar?

- Mas claro - convidou-a Jant, fazendo um gesto para que a jovem passasse, e fechando a porta atrás dela. Indicou uma cadeira para que Sieu se acomodasse, e sentou-se ela mesma na cama. Sieu deixou a bandeja sobre a mesa simples do quarto e finalmente tomou assento, começando imediatamente a falar.

- A senhorita queria saber o que aconteceu no Dia de Litha, em 1907?

- Sim! - Exclamou Jant, inclinando o corpo para a frente em expectativa.

Sieu balançou a cabeça, como que esperando aquela reação. Prosseguiu, então, num tom cauteloso:

- Eu não sei se possui algum conhecimento sobre a Antiga Religião, mas...

Jant deu de ombros.

- Sei o que se aprende na escola - declarou. - Esse é o dia do solstício de verão e das fogueiras de Beltane... acho que ainda seguem esses ritos nas zonas rurais, não é?

- Sim. Também temos alguns rituais aqui em Hegestap a esse respeito, senhorita. A senhora Wassenaar vai lhe falar sobre eles quando chegar o momento, e eu não vou antecipar o que é da alçada dela. Mas, dito isso, é no Dia de Litha que a barreira que divide este mundo do Mundo Invisível se torna mais tênue... e em que os poderes do Outro Lado estão mais fortes.

Jant ergueu os sobrolhos, imaginando que na sequência iria ouvir uma história de fantasmas. Mas o que Sieu lhe disse foi bem mais assustador:

- Em 1907, no Dia de Litha, as forças do Outro Lado tentaram tomar Hegestap... e foram repelidas. Infelizmente, a bibliotecária de então, a senhora Kors Brandsma, foi morta no ataque.