O Natal de Um Milionário Solitário
 
 
 
 
      Rio de Janeiro, dezembro de 1994.

     Em frente à televisão, o menino olhava atentamente para o filme que passava naquela tarde. Na tela, outro garoto muito parecido com ele observava uma enorme árvore de natal construída no meio de uma praça de Londres. Era um menino de rua e olhava para a árvore de natal como se fosse a primeira vez que tivesse visto algo parecido. De repente um floco de neve cai na ponta de seu nariz. Ele leva as mãos ao nariz e sorri. Logo começam a cair mais flocos até que começa a nevar. O menino começar a pular em volta a árvore de natal.
    Aquilo tudo era muito mágico para o garoto. Adorava filmes natalinos. Viajava com aquelas imagens brancas e ficava imaginando como deveria ser delicioso deitar na neve. Era uma criança cheia de sonhos. Cheia de sonhos e vitima da diferença de classes. Do lado de fora de sua casa, não havia uma enorme árvore de natal, mas sim uma enorme amendoeira cheia de fios elétricos clandestinos cruzando suas folhas, e com seu tronco pintado de verde a amarelo devido a conquista do tetra campeonato mundial de futebol do Brasil. E não chovia neve. Do lado de fora, uma intensa chuva castigava a favela e muitas casas estavam sendo invadida pela força da água. Era nos filmes que ele fugia da realidade.
    Na hora do intervalo, quando ele se levantou para ir até o banheiro, um emblema com as letras FC que, qualquer pessoa diria se tratar de Futebol Clube, surgiu na tela. Um homem oriental, talvez chinês, talvez coreano, japonês ou, quem sabe africano (afinal tudo se mistura) surgiu em trajes brancos. Muito simpático, ele falava sobre a empresa recém criada “Family Company”, sucesso no Japão. Naquela hora, o menino não viu a propaganda da empresa, mas logo, logo ela cruzaria com ele novamente.
                                                    ••••••
    Um enorme engarrafamento, coisa difícil de acontecer, se formou na rua que dava para a maior casa do condomínio Cabritos Malteses, na Barra Da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Todos os moradores que por ali passavam, diminuíam a velocidade de seus veículos só para ver qual novidade o milionário José da Silva Gomes reservaria para o natal que se aproximava. Há três anos ele se mudara para o condomínio, um dos mais luxuosos do estado. E exatamente há três anos, durante todos os natais, ele impressionava pela grandeza dos enfeites natalinos de sua mansão.
    A casa tinha três andares e mais de cinco quartos. Era enorme. Era quinze de dezembro e logo os montadores chegaram para colocar as luzinhas na fachada. Outros montavam a enorme árvore de natal de vinte metros. Sobre o telhado, um enorme trenó se pendurava com um papai Noel gigante soltando flocos de neve de isopor pelos dedos. As crianças ficavam maravilhadas. José contratara garis para limpar a sujeira deixada pelo isopor, e isso deixava as pessoas ainda mais impressionadas.
    A maioria dos moradores eram pessoas de status social elevado e todas muito mesquinhas. Nunca se cumprimentavam. Já o morador novo, falava com todos. Dava bom dia, boa tarde e até boa noite antecipado. E, mesmo que com certo estranhamento, eles respondiam. José era um personagem quem foi se tornando querido no condomínio. Todos queriam saber sua origem. Como poderia ser tão rico e tão simpático. Por que morava sozinho? Por que adorava tanto o natal? Por que só recebia seus familiares na época do natal e cada vez as pessoas pareciam ser mais diferentes? Realmente era estranho. José só recebia seus familiares na época do natal. E, no dia seguinte, eles já sumiam. Como que por passe de mágica.

Rio de Janeiro, 24 de dezembro de 2009.

    Mágica. Mágica exatamente a palavra que definia natal para José. E na manhã do dia 24 de dezembro, ele acordou com o barulho de pratos quebrando. Imediatamente vestiu seu roupão com suas iniciais bordadas no peito esquerdo, e desceu os dois lances de escada de corrimãos dourados que davam de frente para a cozinha. Perto do fogão, a cozinheira ajeitava o relógio de parede enquanto conversava com uma bela moça morena de cabelos cacheados e bochechas enormes.
    -Vocês chegaram mais cedo!- comentou José, sorrindo e indo em direção às duas.
    -Ah, é melhor se adiantar do que se atrasar. Esse ano precisamos fazer o melhor para você, Jô!-comentou a cozinheira.- Todo ano devemos nos superar.
    José saiu da cozinha pela porta que dava para o quintal, e lá fora, um monte de pessoas andava pelo jardim. Todos de sua família. Ele novamente sorriu e voltou para a cozinha.
    -Dessa vez vieram todos? Ou alguém deixou de vir?
    -Poxa, não conseguimos trazer seu avô e nem seus sobrinhos. Parece que tinham muita coisa para fazer lá pela nossa cidade. Sabe como as coisas são. A procura é enorme. -comentou a moça bochechuda que era a esposa de José.
    O dono da casa foi até seu quarto e revirou o guarda-roupas de metal. Abriu algumas gavetas até retirar um cartão. Levou o cartão até a mesa do telefone e discou alguns números.
    Durante toda a tarde os empregados e familiares prepararam comidas para a ceia. Tudo ao som de músicas natalinas que José fazia questão de escutar o dia todo. Mandara instalar alto-falantes por toda a casa, afim de que todos compartilhassem das canções. Sua preferida era “Jingle Bells Rock”. E era exatamente ela que ele dançava debaixo do chuveiro naquele instante em que a campanhia de sua casa tocou.
    Um dos empregados foi até o banheiro e bateu na porta. Repleto de espuma e tentando inventar um passinho novo para a música que tocava, José pediu para que o empregado esperasse. Mas após o homem insistir e dizer quem batia na porta, José nem se enxaguou. Tirou a espuma com a toalha e desceu as escadas correndo.
    Ao notar a pressa de seu chefe, a cozinheira perguntou ao empregado quem batera na porta. Ele fez um olhar de quem não entendia a situação e apenas disse que era a família de José.
Correndo por um caminho de tijolos até o enorme portão de sua casa, José foi cumprimentando rapidamente cada membro de sua família que andava pelo jardim. Alguns tinham papéis nas mãos e pareciam concentrados no que liam. Outros encostados em árvores, se espreguiçavam e às vezes consultavam os papéis. Um helicóptero sobrevoava a mansão. Uma equipe de televisão costumava filmar a casa de José. Já havia virado uma tradição natalina.
    Ofegante, ele chegou ao portão. Os seus seguranças tentavam retirar as pessoas, mas elas insistiam.
    -Deixe eles entrarem, Paulo. Pode liberar a portaria. -ordenou José ajeitando seu roupão e tirando um pouco de espuma de dentro de suas orelhas.
    Uma mulher idosa, acompanhada de duas crianças, dois homens e outra moça entraram. A mais velha chorava compulsivamente. Soltou a mão de uma das crianças e correu para abraçar José. Ele no inicio tentou se esquivar, mas não agüentou e abraçou-a fortemente olhando as pessoas em volta que o observavam
    -Desculpa. Não viemos estragar seu natal. Mas é que eu não me agüentava de saudades de você...Meu filho.
    Um dos defeitos dos milionários, principalmente dos novos milionários, é querer ostentar riqueza. Comprar coisas que são supérfluas. Coisas que nem mesmo são úteis. E José era um desses. Mesmo não precisando ser milionário para torrar dinheiro( afinal pessoas pobres preferem ter celulares que fazem tudo à uma casa digna de se morar),gastar dinheiro à toa era um dos pecados humanos mais praticados. E José, sem ter o que fazer com o dinheiro, mandou instalar microfones por toda a mansão, exceto em seu quarto. Assim que a senhora disse as palavras MEU FILHO, todos pararam o que estavam fazendo e começaram a prestar atenção na conversa transmitidas pelos auto-falantes. O clima era emocionante, pois a conversa acabou tendo como trilha sonora a música NOITE FELIZ.
    -Mãe, porque não me avisou que vinha? Eu teria ido buscá-la.-perguntou José.
    -Filho desde que você ganhou na loteria, você não nos procura. Sei que está vivendo como quer. Que vive para seus natais cinematográficos. Mas não agüentaria passar mais um natal sem você. Não vim para ficar, vim para te ver.
    José engoliu a seco. Ela estava certa.
    -Não acreditei quando te vi na televisão. Sempre achei que fosse ficar famoso, mas nunca que aparecia na televisão fazendo o que você fez.
    A senhora se referia a um anuncio promocional de uma empresa. Uma empresa japonesa chamada “Family Company”, qual José havia aparecido agradecendo seus serviços.
   -Sei que não somos uma família perfeita. Que não somos unidos e que seu pai não é lá um exemplo de pai, tanto que nem quis estar aqui hoje. Mas não tem como substituir a gente, filho. Somos pobres, mas somos dignos. Não se pode negar a família. Somos feitos de amor, e escolhi o natal porque não há data melhor para se aceitar e perdoar. Estou aqui para perdoar você e te dizer que ainda te amamos. E que não te nenhuma noite... -começou a chorar.- Nenhuma noite que não reze por você e agradeça por ter ganho tanto dinheiro. Mas espero que pelo menos tudo que lhe ensinei não tenha sido apagado.
     As pessoas dentro de casa choravam como ao final e uma novela. Cozinheiros, mordomos, seguranças, todos choravam. Uma das mulheres dentro da casa respirou fundo e repentinamente retirou a peruca loira que usava.
    -Não posso mais fazer isso!-disse ela caminhando decidida até o quintal.
    A mulher se aproximou de José e abraçou sua mãe.
    -Me desculpe. Eu...eu me sinto tão envergonhada. Não posso nunca ser como a senhora.
    Nesse momento os vizinhos mais fofoqueiros já estranhavam a movimentação no quintal da casa mais vigiada do Rio de Janeiro, e não estou falando da casa do Big Brother Brasil.
    -Sou uma atriz contratada. Presto serviços a uma agência de família. A senhora já deve ter escutado falar da “Family Company”, não?
    A senhora franziu o cenho. Não havia entendido.
    José se intrometeu na frente da mulher.
    -Deixa que eu falo com ela.-pediu.
    -José, eu sei do que ela está falando. Só fiz essa cara porque ela é muito mal educada para fingir ser sua mãe. Nem boa tarde ela me deu, você viu? Tanto que vim até aqui para vê se era verdade o que havia visto na televisão.
    José sorriu.
    -Sei que você contratou uma empresa para lhe ceder uma familiar. Tem feito isso pois não vê nossa família como uma família perfeita. Só não sei como consegue dividir uma época tão linda, e que você considera tão mágica e de fato é, com desconhecidos.
    As duas crianças que a acompanhavam começaram a correr pela casa. Pararam ao ver a enorme árvore de natal erguida e começando a se encher de enfeites.
    -Mãe, me desculpe. Eu sei que estou errado, mas eu...
    -Filho, eu te entendo. Não estou aqui por que quero seu dinheiro. Só vim lhe desejar um feliz natal. Vamos voltar para nossa humilde casa. Ah, as crianças lhe trouxeram um presente. Estavam loucas para conhecer a casa que viram na televisão e eles acreditam que você seja Papai Noel. Viram sua casa na televisão e ficaram loucas quando eu disse que você era meu filho.
    José travou.
    -Elas que fizeram esse presente. Aceite! Não é de ouro, porém vale muito mais. É de coração.
   
Um embrulho amassado foi entregue ao rapaz que já não conseguia conter as lágrimas. Desembrulhou sem a menor dificuldade. E sorriu ao ver um desenho feito em cartolina. Uma casa imensa e na janela, um Papai Noel com braços saindo da cabeça. Uma seta ligava-o ao nome TIO JOSÉ.
    O rapaz desviou os olhos para o jardim. Ficou encarando aqueles desconhecidos que ensaiavam seus textos para representar na hora da ceia.  Como pudera substituir o amor familiar por uma família produto? Lembrou dos três natais anteriores. Como sempre sentia que faltava algo. Lembrou das três mães que já tivera e nenhuma delas o deixou tão emocionado quanto a sua mãe verdadeira. Voltou em mente até o dia que assinara o contrato de cinco anos com a empresa que lhe dera a família. Pensou em como era horrível ter que contratar família para parecer com as dos filmes.
    Chorou.
    A senhora chamou as crianças que vieram correndo imediatamente E lhes deram a mão.
    -Ainda moramos na mesma casa. Ela tá melhorzinha. Quando quiser pode aparecer... -falou sua mãe piscando o olho esquerdo para o filho.
    José ficou observando eles se afastarem. Assim como todos na casa que haviam acompanhado toda a conversa. Um aperto no peito o tomou. Era difícil vê-los indo embora. Suas lágrimas escorriam ao som de NOITE FELIZ. Fechou os olhos.
 
            Mais tarde...
    Faltavam cinco minutos para a meia noite. Dona Suzana terminava de abrir as latas de sardinha para colocar sobre o macarrão que soltava fumaça sobre a mesa. Lá fora, um calor insuportável tomava conta da comunidade, mas as crianças não se abalavam e continuavam soltando estalinhos e bombinhas, para desespero dos cães de rua que corriam com medo dos estouros.
De repente, Mike entrou pela porta correndo e muito suado.
    -Vó, vem ver! A senhora não vai acreditar!-gritavao menino puxando a avó pelas mãos.
    A força foi tanta que o tabuleiro de macarrão caiu todo no chão. Mas ela nem ligou. Acompanhou o menino até a porta e apenas ficou observando.
    Um helicóptero se aproximava do local. E deixava cair dele algo branco e suave. As crianças o acompanhavam por baixo, deixando que aquilo caísse sobre sua cabeça. Era inacreditável,mas estava nevando em plena favela.
    Muitas pessoas acompanhavam a aeronave que parecia ir em direção ao campo de futebol atrás da casa. Todos corriam. E muitas crianças pulavam de alegria. Uma delas, um menino de rua observava aqueles flocos caindo sobre sua cabeça. Um dos flocos pousou sobre seu nariz. Ele sorriu e pegou cuidadosamente. Olhou para o helicóptero sentindo um arrepio de felicidade.
    A aeronave pousou, porém a neve continuava caindo. Todos estavam brancos e felizes. De repente a porta se abriu, e uma fumaça vermelha e verde começou a sair de dentro da nave. Devagar uma silhueta foi aparecendo. Era Papai Noel.
    O bom velhinho saiu devagar e com um enorme saco. Montou uma cadeira vermelha por ali mesmo. E sentou-se. Ficou olhando para as pessoas. Sorria emocionado. Todos gritavam seu nome. Todos sorriam. A festa era imensa.
    Dona Suzana se aproximou mais um pouco puxada por um de seus netos.
    Foi então que Papai Noel a notou. E piscou para ela. Ela sorriu e começou a chorar. Piscou em resposta e lhe mandou um beijo. Naquela noite, todas as crianças da favela ganharam presentes, e além disso, ganharam um natal inesquecível. Um natal mágico.
    Mais tarde, José conversava com sua mãe em um quarto da casa. Ainda vestido de Papai Noel, se lamentava por tudo. Por ter estragado tantos natais. Confessou que os melhores natais foram aqueles quais passara com quem realmente o amava. Que realmente dividiam com ele o amor que se tem nessa época. Emocionado, tirou a barba e o enchimento.
    O que ele não sabia, era que pelo buraco da fechadura seus sobrinhos olhavam tudo. E não se enganem que eles desacreditaram em Noel. Eles só confirmaram o que eles desconfiavam.
    -Eu não disse que ele era Papai Noel!-disse um deles sorrindo.
                                                 ••••••
    •Até hoje José volta na favela todo natal e distribui presentes. Muitas das crianças realmente acreditam que ele seja o velho Noel.
   Sua família mora com ele na mansão. Sua mãe é a dona da cozinha. As empregadas nem ousam chegar perto das panelas e adereços.
   Os moradores do condomínio finalmente viram de onde vinha toda a educação e humildade de José. Assim como entenderam como um milionário tinha um sobrenome tão comum quanto Silva, que, para eles era sobrenome de pobre.
    A “Family Company” continua fazendo sucesso no ramo. E parece que há muitas pessoas que acham que natal é só presentes, shoppings cheios e barriga cheia...e perderam o valor real dessa data.


                                                     Feliz Natal!

                                  
FIM
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 21/12/2009
Reeditado em 04/12/2011
Código do texto: T1988392
Classificação de conteúdo: seguro
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