de:Rafael Velloso

“NÃO É MAIS IGUAL”
 
     Da janela os fogos eram espetaculares. Assim que marcou onze e cinquenta da noite no relógio digital do vídeo cassete aposentado, mas que ainda servia de relógio, Edgar subiu para a laje do sobrado, onde a visão era mais ampla, e esperou pela meia noite. No andar de baixo, sua mãe já dormia. A televisão transmitia a Missa do Galo direto do Vaticano. Mas Edgar achou melhor ver as luzes. Elas costumavam a acalmá-lo quando criança.
     Do alto da laje, a paisagem se contrastava. Com uma visão ampla do bairro da Tijuca, ele podia comparar tudo ao seu redor num ângulo de 360°. O sobrado ficava no alto de uma rua íngreme, e ao seu redor, a Tijuca se transformava lá do alto. Podia observar prédios, florestas, e as favelas da região. Mas naquela noite, tudo parecia uniforme. À meia noite, os fogos começaram a explodir e a iluminar o céu. As cores se misturavam e faziam parecer dia. Mas Edgar sentiu que nem mesmo os fogos eram os mesmos. Nem eles conseguiam animá-lo. O natal não era mais o mesmo.
     Apoiado no parapeito da laje, que dava visão para frente da casa, justamente para o pátio da vila, observou algumas poucas crianças brincando. Quando entrava em transe por conta de suas memórias de infância, Edgar ia fundo. Conseguia imaginar todas as cenas, e somente aquelas crianças conseguiram trazer de volta as lembranças que os fogos fracassaram em resgatar. Pôde se ver brincando na vila com seus primos e amigos de infância. Colocando bombinhas dentro de garrafas e correndo, fugindo da explosão. Correndo sem rumo, só pelo prazer de correr. Chegando em casa imundo e suado, e  recebendo olhares carinhosos dos familiares. No natal, a casa da família ficava cheia.
     Geralmente, todos se reuniam na casa da vó Fernanda. Com os pais separados, desde que ele tinha sete anos, o menino precisava escolher uma das datas para passar com cada um. Geralmente, Edgar passava o natal com sua mãe, e o ano novo com a família de seu pai. Ano novo ele não ligava muito. Ano novo ele via como uma festa comum, para adultos. Já o natal... Bem, no natal ele via magia. Era como se todo mundo ficasse amigo. Como se os problemas sumissem e tudo se tornasse extraordinário. Na casa de sua avó Fernanda, na noite do dia vinte e quatro, todos seus doze primos se reuniam. Passavam, às vezes, um ano inteiro sem se falarem, apenas em aniversários ou dia das mães. Porém, quando no final do ano se reencontravam, a brincadeira era incessante. Todos quase da mesma idade, uma diferença de um ou dois anos no máximo, filhos das quatro filhas de dona Fernanda, o natal era sinônimo de muita brincadeira.
     A casa ficava cheia. A mesa era farta. Edgar se fartava de pudim de leite, e ninguém o chamava de “olhudo” como nos dias comuns. Ele tinha uma verdadeira tara por pudim de leite. Queria comer até não aguentar mais. E no natal ele podia fazer isso. A casa lotada, seus tios, vizinhos, primos e seus dois irmãos, ninguém falava nada se ele comesse mais de cinco taças. Parte de seu amor pela data vinha daí. Dessa liberdade.
     Com os primos, ele passava as melhores horas na casa de sua avó materna. Dona Fernanda era uma pessoa simples. Aparência frágil, pele lisa e sem rugas,  Passava a maior parte dos dias sozinha em casa, e seu coração enorme não condizia com seu pouco mais de um metro e cinquenta e dois de altura. Em dias comuns, geralmente, fazia os afazeres domésticos, e depois sentava para assistir televisão. Não era alfabetizada, mas gostava de assistir à toda programação com o close-caption ligado. Não sabia o que estava escrito ali, mas só de ver aquelas letrinhas passando debaixo dos artistas, e saber que alguma coisa elas queria dizer, já a deixavam satisfeita.
     Adorava cozinhar, adorava ver a família reunida. Nascida no interior de Minas Gerais, e criada sobre forte rigidez pelos pais agricultores, ela não era muito de falar. Edgar começou a entender a situação de sua avó materna quando fez doze anos. Notava que enquanto todos brincavam e conversavam em casa, ela apenas observava sorrindo. Parecia se orgulhar. Era como se ela se orgulhasse de que todos que estavam ali vieram dela. Aquela reunião toda, aquela família reunida, todo mundo era uma parte dela. Suas filhas, seus netos, seus bisnetos. Era uma fração de sua alma. E ela observava calada. Apenas com um sorriso leve no rosto.
     Quando dava meia noite, todos iam abraça-la primeiro. Todos os netos em cima dela, abraçando-a, balançando-a e beijando-a. ela adorava aquele calor. Era bom se sentir amada. Adorava o natal. Aquela reunião. Gostava de ter a certeza de que todos estavam bem e seu marido, onde quer que estivesse lá no céu, deveria estar orgulhoso também.
     O natal era mágico. Mas de repente, algo mudou. Se fizessem um vídeo da família, se filmassem todos os natais, e depois editassem e fossem mostrando as imagens passando rapidamente, como fazem em alguns documentários, veriam como as coisas tinham mudado. Como a sala da casa foi se esvaziando com o passar dos anos, e quando Edgar fez vinte e seis anos, foi que tudo parecia ter acabado.
     Acordou do transe das lembranças ao ouvir sua mãe lhe chamar lá embaixo. Desceu as escadas estreitas, mas voltou no meio do caminho ao se lembrar de que se esquecera de trancar a porta da laje. Feito isso, foi até o quarto aonde sua mãe se encontrava deitada. Ela estava coberta até o pescoço e parecia cansada. De olhos fechados, perguntou-lhe se não ia até a casa de sua avó, que ficava há uns seis quarteirões dali. Ele pensou um pouco, mas decidiu ir. Não podia deixar sua querida avó sozinha.
     Caminhou pensativo até a casa. E ao chegar lá, constatou que realmente tudo tinha mudado. Ainda com a esperança de reencontrar todos os primos, somente o quem encontrou foi sua avó, sentada no sofá olhando para a televisão que não exibia nada, apenas estática. Um chiado barulhento invadia a sala, e lá estava dona Fernanda encarando a tela cinza. Estava arrumada, com um vestido florido e cabelos arrumados. Edgar sentiu-se mal. Ela provavelmente estava esperando por todos mais uma vez. E mais uma vez, ninguém aparecera.
     -Vó, o que a senhora tá vendo aê? Num tá passando nada na tevê? – perguntou o neto pegando o controle e colocando na Missa do Galo.
     Ela sorriu e abraçou o rapaz.
     -Aqueles chuviscos parecem formiguinhas, né? Ed? Muito engraçado.
     Edgar se sentou ao lado dela.
     -Quer comer alguma coisa, filho? Tem pudim...
     -Oba! – respondeu com uma animação exagerada, mas propositalmente. – Vai perguntar se macaco quer banana?
     -Tem mousse de banana também, quer?
     Ele sorriu e a acompanhou até a cozinha.
     Sobre uma longa mesa de madeira, havia uma grande variedade de frutas, carnes, doces, e as demais comidas natalinas. Tudo parecia enfeite, tudo estava arrumado.  Provavelmente ninguém se lembrara da vó. Edgar sabia que os primos haviam crescido, e estava decepcionado com todos, inclusive com seus tios. Antigamente, todos se reuniam naquela casa. Seja com os maridos, namorados, amigos. Mas hoje, todos estavam em outro lugar. Todos preferiram as novas amizades, os novos círculos sociais, à estar em família com sua avó. A responsável pela vida de todos ali.
     Preferiam estar com amigos tirando fotos para mais tarde postarem em seus Facebooks da vida. O natal tinha mudado. Deixara de ser divertido, e se transformara numa data triste. Edgar estava desanimado, mas não deixaria sua avó sozinha. E ela reconheceu que o espírito natalino faz milagres, pois por mais que seus familiares a deixasse de lado, aquele neto, que falecera há exatamente um ano, voltara para visitá-la e confortá-la justamente quando precisava de apoio.
     O natal trazia mágica e conforto. Dona Fernanda já não via mais graça na vida, a aproveitava como dava,e já não via mais graça no natal. Mas enquanto recebeu a visita especial de seu neto preferido, que sempre aparecia quando ela precisava, dava valor a cada segundo, e contava os dias para que pudesse se juntar a ele no céu.

 
 
FIM
---------------------------------

Gostaram?Então dêem uma olhada nesse outro texto:
NATAL NO PLURAL - MILAGRE NA HORA ZERO

http://www.recantodasletras.com.br/natal/3395791
--------------------------------------------------------------
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 25/12/2011
Reeditado em 25/12/2011
Código do texto: T3405747
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.