Vô Dila e eu não nos conhecemos pessoalmente, mas de coração somos avô e neta, independente da idade cronológica de cada um. Antes de reabrir sua página me enviou um lindo conto de Natal para que publicasse em nome dele.
Aqui está:

                            
 
Já faz muitos anos, quando conheci um molequinho de olhos negros, cabelos caídos pela testa, entregador da binga para o padrinho tirar rapé (antigo costume), gesto com o qual ganhava tostões – que era o passaporte, para o ingresso no tabuleiro dos doces da dona Ozana.
 
Fedelho
 - como o chamavam, e já conhecia o sentido mágico. Sentido diferente daqueles naturais. Sentido que surge numa única ocasião. Está para a alma, como o perfume para o olfato. É um estalo, um clique, capaz de transportar pessoas da realidade crua, e introduzi-las num universo de sonhos; bastante para acelerar ou diminuir o pulsar dos corações.

No primeiro contato com o fenômeno, a vida, o cotidiano fluía normalmente. As pessoas faziam por si mesmas, e só Deus fazia por todas.
Como de rotina, ele saiu da escola, aos pulos, rumo a casa.  No trajeto não havia como deixar de cruzar com os pés-de-moleque, os queimados-de-mel-de-abelhas e as ambrosias vendidos por dona Ozana.

Aquelas coisas davam água na boca, faziam lamber os beiços!  Ah...,  Aquelas coisas que não estavam ao alcance de uma cutucada com vara, ou sacudidela nos galhos, como fazia nos umbuzeiros, cajazeiras e cajueiros.  Dependiam da compra!  Dependiam dos tostões que o Padrinho dava-lhe. Aliás, dar não era bem o que acontecia.  Era uma barganha mediante recompensa, na qual o Afilhado suspendia o camisolão (hábito de antão), em plena rua, entregando a binga para o Padrinho tirar longas cheiradas do tal rapé, em troca de tostões.

Deliciava-se, era o de se presumir, porque após a xerocada o homem dava longo suspiro, exclamando:
- Hum... !  Tá bom que tá danado.

Certo dia, daqueles do apetite mais acentuado, o moleque passou mais uma vez pelo tabuleiro dos doces da dona Ozana. Olhou aquilo tudo, porém foi para casa a seco mais uma vez. Não sem antes, disfarçadamente, procurar pelo Padrinho, por toda a Cidade.  Pensando:
- Quem sabe, vou encontrá-lo, despertar-lhe o costume da barganha, receber a paga e fartar-me! ...

A família numerosa e pobre; os pais não tinham como concorrer para a satisfação gastronômica da cambada dos quatorze filhos, todos a lamber beiços pelos doces da dona Ozana. Assim o menino foi dormir, pensando nas guloseimas.

Dia seguinte, despertou e pouco depois traquinava pelos arredores. Esbarrou-se com o conhecido sovina, -  seu Yôyô. Pediu a benção (antigo costume):

-Deus lhe abençoe, respondeu o homem!

Esse homem, além de cocó, (sovina) também não era dado a xeretar criança.  Aliás, o menino ficou temeroso ao vê-lo, porque estava em dívida; dívida de entregar-lhe as orelhas para um puxão, porque era um dos diabretes que lhe dava cabo dos cajás. No entanto, ao invés de castigá-lo, o homem tomou-o no colo, segurou as bochechas, entrou na venda do seu Alarico, suspendeu a toalha que cobria o tabuleiro, pegou cinco pés-de-moleque, mandou o caixeiro embrulhar e entregou-lhe dizendo:
- São seus!
Após, aplicou uma agradável palmada na bunda, e sorrindo ainda disse:
- Pode ir!
Não falou dos cajás? ...

Foi nesse momento que o garoto sentiu o clic, aquele tal sentido! 
Alguma coisa estaria acontecendo, ou por acontecer, pensou! ...   Não estava vivendo um dia igual aos outros.  Só poderia ser um daqueles dias mágicos!
Ainda nem era meio dia e via que tudo estava modificando-se:
-  Notava que as pessoas alegres extravasavam-se. 
- As conhecidas tristonhas, sorriam com olhares brilhantes; donas-de-casa desempoeiravam as cortinas, enquanto abriam as janelas dos velhos casarões, como se estivessem a acordá-los da noite do tempo.   Pintores acabavam de dar as últimas brochadas nas fachadas das casas.

Outro fato extraordinário foi o velho Terto - conhecido avarento - chamar o menino, levar a mão na algibeira, retirar duas moedas de tostão, dizendo com o dedo em riste:
- É para o seu mealheiro. Não vá gastá-los se empanturrando de doces! .

À noite acenderam-se todos os lampiões de carbureto na Cidade
Houve visitas às lapinhas e a Missa do Galo.
Aconselharam que ele pusesse o sapato atrás da porta.
Dia seguinte, ao despertar ficou extasiado quando encontrou dentro do sapato uma reluzente gaita-de-boca! ...
Tanta coisa boa num só dia, era a tal mágica:
- A mágica do clic, pensava... !
Foi a avó quem disse, com voz de ninar e olhar iluminado pelas estrelas:

-No dia de hoje, meu neto, comemora-se o nascimento da Bondade!  De Jesus, o filho de DEUS.
As pessoas estão sob a força do bem que Ele a todos inspira!
Naquele momento o menino não compreendeu o bastante, porque ainda era muito criança.  Porém,  com  o  fluir  dos anos   conheceu a verdade  que  vem  eternizando-se  há milênios:

-E, ainda nos presentes dias angustiados da humanidade, atravessando  os  tempos,  em  um  só  CLIC  a  Bondade  converte  todas  as  pessoas  em  lindas  criaturas, vivendo  contagiante  bem estar,  para  festejar  o  advento  do nascimento  entre os  homens,  de  Jesus,  a  Bondade,  o filho  de  Deus.



*Binga: Isqueiro de fuzil.  Estojo onde se guarda o isqueiro.
*Rapé:Tabaco em pó que serve para cheirar.



Perfil enviado pelo autor: 

Vô Dila: sertanejo, terceira idade Ipirá BA, acordeonista. Tecladista, naturalista apaixonado pelo Brasil e seu povo, pelos costumes, adoro viola caipira, abôio, pássaros, cão, cavalo. Boi, e todas as vidas (não peçonhentas)!

Deixo- me tocar pelo Sol, pelas noites frias da Lua, da chuva, pelo vento...

 
 *VÔ Dila  me comunicou que já tem página no Recanto das Letras e já publicou outro conto. Leiam!



 
Maria Mineira e Vô Dila
Enviado por Maria Mineira em 21/12/2012
Reeditado em 21/12/2012
Código do texto: T4046601
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