Sonhos góticos

“Pra onde ela foi? Pra onde a levaram?”

Meus pés estavam pro alto. Minha cabeça pendurada para baixo, enquanto eu me equilibrava no sofá. O sangue descia para o meu rosto, já estava vermelho. E meus cabelos desciam ao chão, sem ao menos tocá-lo. Eu inspirava fundo e observava o teto, alienado para a utilidade da vida.

- Guto! – chamou aquela voz familiar.

Me pus de pé e fui ao encontro de Alma. Ela me olhou estranho, porque meu rosto estava muito rubro e meus cabelos imploravam por um pente.

- Eu só vim ver como você está... – ela mantinha o olhar questionador – Sei lá, ta precisando de alguma coisa?

- Não... Tá tudo bem... Obrigado... – respondi calmamente e me dirigi até a cozinha, usando meias, uma calça jeans e uma camisa de manga comprida branca.

O motivo por Alma estar me visitando era óbvio. Ela achava que eu tinha pirado. Na verdade, todos os meus amigos achavam. O que estava começando a me deixar preocupado, pois para mim quem tinha pirado eram eles.

Eu estava bem. De verdade. Tinha pouco tempo que eu conheci uma garota gente boa. Nós conversamos bastante e ela aceitou meu convite para jantar. Só que no dia, é claro, ela não foi.

Digo “é claro” porque já estou acostumado com esses tocos das garotas e, pra falar a verdade, levar um toco já foi até muito, porque antigamente eu não conseguia nem marcar um jantar. Eu acho que elas “ficam comigo” (só do meu lado mesmo) porque sempre precisam de ajuda em alguns trabalhos da faculdade. Alguns são muito legais, só que eu finjo não gostar muito do assunto, pra tentar não parecer muito nerd.

Na sexta-feira à noite fui até um barzinho local tomar uns gorós. Me senti vazio e solitário, enquanto olhava a movimentação da rua lá fora, pela vidraça.

- O senhor vai pedir alguma coisa?

Me virei para olhar o atendente, mas havia uma outra pessoa sentada ao meu lado. Minha espinha congelou, senti calafrios. Era uma mulher. Branca demais para ter conhecido a luz do sol. Os cabelos bastante lisos e pretos. Usava um vestido comprido com uma manga esquisita. Tudo infinitamente preto. Era só o que me faltava, a noiva cadáver veio beber comigo. É... Eu devia mesmo estar louco. Dizem que loucos atraem outros loucos. E eu a atraí mesmo, porque ela não parava de me olhar.

No fundo ela não era feia, só esquisita.

- Aceita beber alguma coisa? – perguntei.

- Aceito seu sangue.

Engasguei e tossi, dando uma batida no tórax.

- Perdão?

Ela fez sinal pra que eu chegasse mais perto e eu, assustado, me curvei até ela.

De repente ela me beijou. Beijou de língua mesmo e eu correspondi, mas confesso que ainda estava assustado. Pela primeira vez na vida ganhei um beijo sem precisar pagar ou fazer um trabalho. Eu a abracei e começamos a dar uns amassos ali mesmo no bar. Era a maior loucura que eu já tinha feito na vida. Seu beijo tinha um gosto estranho que lembrava vinho e hortelã. Eu não podia negar que, por debaixo daquela roupa ela era gostosa, só que... Meu deus! Ela sentou no meu colo, era um tecido gelado que me cobria. Eu fiquei nervoso, pensando no que ia dizer, mas ela não dava chances de eu dizer nada. Abri um olho devagar. O garçom, atrás do balcão, disfarçou secando alguns copos. Eu não pude conter o riso e ele resmungou algo obsceno. Eu queria levantar dali e leva-la para outro lugar, mas caramba! Se fosse um sonho, eu ia acordar antes de chegar a qualquer lugar. Foi tudo tão anormal, que ela podia me dar um tapa e depois chamar a polícia. Ah, não. Eu aproveitaria, já que tinha me dado bem.

Aí ela levantou. Sem olhar pro meu rosto. Levantou e saiu. Que piranha! Ela não falou nada! Nem me deu o e-mail dela. Eu tinha uns poemas do Edgar Alan Poe que ela ia adorar. Será que ela voltaria até mim? Ah, eu tinha que segui-la logo. Ela me devia explicações... Ela me... Molestou?

Isso! Levantei e corri atrás dela, enquanto ela atravessava a rua sozinha.

- Ô, moça, espera aí – me aproximei ofegante.

Ela parou e acendeu um cigarro; então se virou, soltando a fumaça no meu rosto.

- Cigarro? – ela ofereceu, sem me olhar.

- Não, não, valeu... Eu não fumo cigarro... – ela revirou os olhos e continuou caminhando devagar.

- Nem maconha – acrescentei e ela soltou uma risada.

- Pode deixar que eu não ia te perguntar. – ela sorriu. – Por que está tentando me impressionar, gatinho?

(“gatinho”)

Demorei um pouco pra digerir o gatinho (não estava bem cozido).

- Você me beijou! - disse confuso, ficando até meio rouco.

- Ué, você não queria?

- Queria (queria?), mas... Você me conhece?

- Conheço, ué. Você está falando comigo.

- Pra onde está indo?

- Para casa... – ela continuou caminhando.

- Ah... Tranqüilo... - me aproximei e caminhei ao seu lado. Ela quase não olhava pra mim. Na verdade, ela não olhava pra nada. Ou melhor, ela olhava para o nada.

- Err... – pigarreei – Qual o seu nome?

Naquele instante havíamos chegado ao final da rua. À frente o terreno era declive, menos urbano e mais rural. Lá em baixo, bem longe, só havia uma mata fechada, com árvores exibindo suas copas assustadoramente. Pra onde ela estava indo? Pro meio do mato? Onde diabos ela morava?

- Caminho errado? – perguntei, rindo, mas logo o meu sorriso morreu.

Escorreguei e caí sentado no chão de terra, a poeira subiu. Eu tossi, abrindo melhor os olhos para olhar mais a frente. Havia uma área plana entre o declive e a floresta. Me levantei depressa. Na minha frente havia uma lápide de mármore quebrado. Olhei com mais atenção, na verdade haviam várias lápides. Algumas estátuas de anjos, santos misteriosos e covas abertas.

- Chegamos – ela se virou graciosamente para mim, pela primeira vez me olhando nos olhos e sorrindo.

Dei alguns passos para trás, sorrindo meio nervoso.

- N-não tem graça!

- É um cemitério, não um circo. – ela deu a volta e sentou numa tumba, cruzando as pernas e acendendo outro cigarro.

Contemplei aquela funesta mistura de excitação e medo.

- Você é uma assombração?

Ela sorriu. Eu continuei sério.

- Por que tá dando mole pra mim assim?

- Por nada, ora. – ela deu uma longa tragada e soltou a fumaça pro alto – E quem disse que eu tô dando mole pra você?

TÓIM!

Era o cúmulo! Levar fora até de uma defunta!

- E o que vai me custar? Minha alma? – sorri, mas de nervoso, porque estava me cagando de medo.

- Quê? - ela riu alto – O que você acha que eu sou? Uma prostituta gótica excêntrica de outro mundo que cobra almas em troca de serviços sexuais? – ela riu de novo. Também ri.

Caminhei até ela e sentei do seu lado. – Qual o preço?

- A única coisa que você precisa fazer é ser homem o suficiente para cumprir com as suas obrigações.

Ok. Eu estava o meio de um cemitério à noite, discutindo com um fantasma o preço de nossa relação.

Naquele instante eu cheguei a uma grande conclusão na minha vida. Meus amigos estavam certos: eu tinha pirado!

Deitei com ela dentro de uma tumba. O local estava deserto. Só se ouvia o cri-cri incessante dos grilos no meio da mata. Aos poucos o frio foi se dissipando e o calor dos nossos corpos nos envolveu. Comecei a beijá-la intensamente. Passamos a noite toda juntos na cova...

Escuridão.

Calor...

O sol começava a transpassar as frestas das copas das árvores, projetando raios luminosos sobre as tumbas. Uma espessa névoa encobria os monumentos do cemitério. Ela estava em meus braços, silenciosa e vazia. Abri os olhos melhor e visualizei seu rosto.

Fosse o que fosse: não era ela. Aquele defunto - aquela caveira seca e fétida nos meus braços trêmulos. Então, vermes começaram a despender das paredes da cova. Ratazanas se amontoavam aos montes sobre meu rosto apavorado. Suas pequenas e afiadas unhas rasgavam minha pele dolorosamente. Fechei bem a boca, pois vermes entravam nela, e entupiam meus ouvidos. Eu teria chorado, não fossem os roedores sobre meus olhos.

Um segundo e eu não estava mais na cova. Estava num caixão. As pragas ainda me comiam vivo. Sobre mim uma tampa foi colocada e eu me despedi da última fresta da luz solar. Gritei o mais alto que pude, mesmo assim ninguém ouviu.

Escuridão...

Abri os olhos lentamente. Uma leve brisa passou pelo meu rosto.

Eu estava deitado sobre os lençóis macios da minha cama. Estava em casa.

Passei a mão pelo rosto. Nenhuma ferida, nenhum arranhão. Respirei, aliviado.

Lá fora o sol nascia, mas ainda estava um pouco escuro. A campainha tocou.

“Quem seria a essa hora da manhã?”

Meu coração acelerou. Corri até a porta e olhei pelo olho mágico.

Ninguém.

A campainha tocou novamente.

Abri a porta e observei a neblina que cobria a rua da minha casa. Olhei para os lados, mas não havia ninguém.

Já ia entrando de volta, foi quando tropecei em alguma coisa.

Olhei para baixo e avistei uma cesta de palha cheia de panos apodrecidos e úmidos. Me abaixei, retirando os panos com cuidado. Caiu uma carta. Peguei o envelope mas, antes que eu abrisse, algo se mexeu entre os panos. Puxei o restante do tecido e, para meu pavor, arregalei os olhos, quase vomitando com o que havia dentro.

Deitado em posição fetal, havia um bebê morto. O corpinho putrificado e encoberto por moscas varejeiras. Tampei a boca e o nariz pra não vomitar. Me afastei, segurando firme o envelope na mão. Ainda tremendo abri a carta, curioso e li o manuscrito em rústica caligrafia negra:

”Cumpra com as suas obrigações. Cuide do seu filho.”

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 24/06/2009
Código do texto: T1665918
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.